Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sábado, 15 de dezembro de 2012

Festa do Divino em Portugal

As duas postagens anteriores trataram daquilo que poderia se chamar de pré-história da festa. Para as Festas do Divino brasileiras mais propriamente interessa o que se passou com elas em terras portuguesas, nos séculos XIII e XIV, durante o reinado de Dom Diniz, o Lavrador, no período de 1261 a 1325. Começaria a partir de então a história propriamente dita.

Consta - ou pelo menos é o que a maioria dos autores defende - que esse evento iniciou em terras ibéricas sob os auspícios da Rainha Isabel, de Aragão (1271-1336), a Santa[1], casada com o rei supracitado. Era uma pessoa muito caridosa. Cuidava dos pobres e com frequência distribuía-lhes pães. 

Contam de um milagre das rosas, que teria ocorrido quando às escondidas (pois era criticada pelos nobres em razão de seu jeito caritativo), levava pães à pobreza sob seu manto. Foi abordada pelo sovina Dom Diniz, que perguntou-lhe o que carregava. Respondeu-lhe: - rosas! E abrindo o manto, de fato caíram flores, posto que os pães milagrosamente se transmutaram. Sua imagem por isto tem trajes reais, coroa à cabeça e um buquê de rosas no regaço. 

Foi num sonho que lhe foi pedida a construção de uma igreja ao Espírito Santo em Alenquer e que lhe dedicasse uma comemoração. Corria o ano de 1321. No dia seguinte à vidência, após a missa, seguiu para o local indicado para a construção do templo, acompanhada de padres e juízes e milagrosamente já aparecera pronto o alicerce naquele sítio. Teria também ali encontrado a planta riscada. Por conta desses juízes supracitados é que dizem existir na festa até hoje o cargo simbólico de juiz. 

Começada a obra sobre o misterioso alicerce, em certa ocasião, os operários receberam flores da bondosa rainha e elas se tornaram dinheiro, que lhes ficou de paga.

Sobre a festa, a primeira em Alenquer (outros a dizem em Coimbra), teria a rainha pedido licença ao rei, seu esposo, para coroar o primeiro mendigo que visse na igreja, às 15 horas, quando se celebrava o Divino. O rei consentiu. O objetivo era “mover o augusto soberano esposo a tornar-se humilde, no exercício de suas altas funções”. Extraio do professor Nereu este significativo trecho:

Um pobre velho de pedir, todo andrajoso e descalço, subiu os degraus do trono real, e, por certo, tímido e confuso, nele foi tomar assento, a um gesto do “mestre-sala”. Depois, o Bispo tirou a coroa de cima da credência, a fim de pousar na cabeça do mendigo, ajoelhado sobre rica almofada de veludo carmesim, entoando-se nesse instante o “Veni Creator Spiritus”. E, no meio de rolos de incenso e de graves salmodias, rezou-se missa solene, finda a qual se organizou luzida procissão, em que o mendigo coroado era recebido em triunfo como autêntico imperador. 

A rainha então cuidava de distribuir alimentos, benefícios caritativos, promover folganças. 

Gravitando em torno desse núcleo central, as novidades foram aos poucos sendo acrescidas em cada região, pois assim instuiu-se a festa: logo com o grande sucesso em Alenquer, outras localidades puseram-se a imitar e assim a festividade espalhou-se. Fato é que a Festa do Divino se difundiu pelas terras portuguesas e nos arquipélagos dos Açores e Madeira. Com o correr do tempo enfraqueceu no continente e fortaleceu nas ilhas, ganhando ali algumas características especiais, que muito influenciaram as formas trazidas para o Brasil, sobretudo o meridional [2]. 

Antes de observar as festas brasileiras ao Paráclito, vale a pena conferir os elementos componentes e personagens mais significativos das festas portuguesas, a partir da seguinte tabela, que contém um resumo enumerativo que idealizei baseado em PEREIRA & JARDIM (1978), que fizeram bom levantamento bibliográfico sobre as festas ibéricas em honra ao Divino:

LOCAL
ELEMENTOS BÁSICOS
Guimarães (1489)
Instituída a procissão da candeia (luminosa) para livrar da peste. Levaram pães à dianteira para depois distribuí-los. Andor adornado de flores e frutos de cera.
Eiras
Voto de eleger imperador e dar-lhe ofertas para livrar da peste. Até 1823 cortejo com imperador, 2 pajens, 2 criados, música, foguetório, os nobres e a Câmara do Conselho da cidade. Marchavam a cavalo para o convento de Calas, guiados por uma bandeira. Bodos.
Trofa (Bougado, Concelho de Santo Tirso)
As mães dão três voltas ao redor da igreja com as crianças ao colo e depois colocam sobre suas cabeças a coroa para livrá-las da gota infantil. Alvorada cantada pelos romeiros do Espírito Santo.
Castelo
Moças solteiras abanam a imagem do Divino para casarem mais depressa. Mordomos são responsáveis pela festa. Peditório. Os mordomos tem de ser solteiros (acreditam que o casado morrerá, mas se quiser casar, deixa o cargo e dá um abanão na imagem de pedra do Divino no domingo da Santíssima Trindade. Quanto mais forte o abanão, mais rápido casará).
Elvas
Na missa do Divino, na hora da elevação da hóstia o sacristão espalhava pétalas de flores sobre os fiéis e ao término distribuía ramalhetes bentos às pessoas.
Sintra
Festa realizada na Sala dos Infantes, licenciada por D. João II em 1484 e posteriormente confirmada por D. Manuel.
Sarnadas
Ranchos cantavam alvorada.
Mação
Ranchos cantavam alvorada. Autos. Bodos. Bênção do pão.
Penedo (Colares)
Desfile do boi do Divino pelas ruas, enfeitado de fitas, acompanhado de gaiteiro, bandeiras e mordomos. Foguetório. Animal era bento. No dia seguinte matavam-no e distribuíam sua carne aos pobres. Distribuição de esmolas às recém-casadas.
Beira-baixa
Folias compostas por rei, pajem, alferes (com a bandeira), fidalgos tocando instrumentos. Alimentação coletiva durante o ciclo. A função do pajem era carregar a coroa de lata do rei. O cetro do rei era uma varinha cheia de fitas e flores.
Zebreira
(Idanha-a-Nova)
Início na Quinta-feira da Ascenção [3]. Recepção à bandeira; alimento coletivo. Tourada. Confraria. Doze Mordomos [4]. Rituais de alimentação. Juiz e alferes (eleitos dentre os mordomos). Peditório com opa e bandeiras. Bodo. Procissão. O juiz tem uma vara como insígnia. Cantorias.
Monsanto
A confraria distribui jantares no ciclo. Mordomos. Altares são armados e possuem a “pedra de honra” para colocação da coroa.
Açores
Iniciou após um terremoto, para sustentar hospitais e dar assistência domiciliar. Cortejo de gado adornado rumo ao abatedouro. Distribuição de leite. Tourada. Grandes jantares. Coroação, que pode ser feita pelo Mordomo. As folias foram se profanizando e receberam limitações legais, sendo proibidas em 1523 por D. Manuel “devido ao luxo e à ostentação, nos bodos, levando à ruína muitos festeiros”. Em 1774, D. Frei Valério de Sacramento proibiu folia e baile. O povo protestou através da Câmara Municipal e a festa prosseguiu crescente.
Feteira
(Faial)
Mordomo organiza cortejo oito dias antes, com banda. Levam quadros e vão buscar emblemas. Estandartes. Império com coroa, cetro e salva. Coroação. Leilão.
Pico
“Levam no cortejo bolos em forma de argolas, de massa sovada, que, à noite, são distribuídos a todos.”

Note-se portanto o repisamento de algumas características na festa portuguesa:

-          cunho devocional de mistura ao lado supersticioso;
-          desejo de combater doenças;
-          fartura alimentar;
-          caridade (que se aponta como um traço deixado pela célebre rainha);
-          a ideia de um personagem maior, central, figurando imperador ou rei, marcado pela coroa, foco das atenções;
-         presença de uma série de elementos festivos e cargos tradicionais: peditórios, leilões, procissões, estandartes, folias, bandas, confrarias, mordomos, alferes, juízes, etc.

Chama especial atenção os bodos ou vodos, que eram noitadas festivas em honra a este ou aquele santo, que atravessavam a noite dentro das igrejas, em cantorias e comezainas. Não raro extrapolaram os limites de tolerância e bom senso, chegando até orgias, sendo combatidos e proibidos por autoridades eclesiásticas e seculares. Os bodos do Espírito Santo porém foram liberados [5].





* Texto: Ulisses Passarelli
** Link:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] - A rainha santa casou-se com Dom Diniz em 1282. Foi canonizada em 1651. Informações do professor Nereu do Vale Pereira, uma das bases para compor esse ítem: Festividade do Divino Espírito Santo – origem. Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, n. 35-6, dez./1983. p. 26-7.
[2]  - Ver: NUNES, Lélia Pereira da Silva. A Festa do Espírito Santo em Santa Catarina: notícia de uma tradição.  XI Congresso Brasileiro de Folclore, 19-22/10/2004, Goiânia. Anais.
[3] - Dez dias antes de Pentecostes é a quinta-feira comemorativa da subida de Cristo ao céu (quarenta dias após sua ressurreição), pois ainda ficou entre os apóstolos em espírito (cf. At 1, 4-11). Em alguns lugares do Brasil o festejo também começa nesse dia (Alcântara, Mogi das Cruzes, São João del-Rei, etc.).
[4]  - O único lugar do Brasil que encontrei notícia da existência de doze mordomos é em Alcântara/MA, onde há um mordomo-régio (mais próximo ao imperador) e onze mordomos-baixos. Os personagens mais vigentes no Brasil são mordomo-da-bandeira e mordomo-da-coroa e por vezes o mordomo-do-mastro (com mais freqüência substituído pelo capitão-do-mastro). No mais das vezes, são chamados simplesmente mordomos.
[5] - Determinação das Ordenações Filipinas, Livro 5, Título 5, parágrafo 1º, informa Alceu Maynard Araújo, op.cit. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário