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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 23 de junho de 2013

A reza do velho escravo

Um conto da escravidão

            O escravo idoso vivera muitos anos de intensa labuta naquela fazenda. Humildemente suportou toda espécie de maus tratos e serviços pesados. Agora seu corpo já não permitia semelhante trabalho. Tornou-se então tratador dos cavalos do seu senhor.
            Uma vez no mês arriava a melhor montaria para levar o fazendeiro à missa na capela do arraial. Sempre ia também, mas a pé, andando atrás de seu dono, num andar acelerado para conseguir acompanhar, com muito esforço para superar as dificuldades que a idade e o sofrimento de um corpo judiado já lhe impunham.
            Porém, o escravo nunca entrava na capela. Só o branco podia. Enquanto rezavam sinhôs e sinhás, negro velho dava água ao alazão, afrouxava sua barrigueira para o descanso, escovava seu pelo brilhoso.
            Não obstante a distância com que era tratado e a habitual grosseria, o fazendeiro tinha por aquele escravo em especial uma certa predileção. E uma vez, de retorno d’uma celebração domingueira...

_ Viu só negro, que beleza a reza de branco?
_ Vi não sinhô, que nêgo tava escovando animal.
_ Também você num chega na igreja que lá num é seu lugar. Mas, oh, vô te falá: esses ano tudo você tem sido um escravo bom, num dá trabalho. Muito anos comigo. Vou te dá esse presente: próxima missa vou te permitir entrar na igreja.
_ ô patrão, Deus que pague sua bondade!

            As luas se alternaram. Sóis vieram e se foram. Mês passou.
            O escravo estava ansioso, mas em silêncio como sempre. Afinal como seria que conversavam com Zambi?

_ Nêgo, não esqueci minha promessa que sou homem de palavra. Dá água pro cavalo e vem.
_ Sim, sinhô.

            Fazendeiro ficou soberbo lá nos bancos da frente; escravo, na porta, chapéu esfolado saiu da cabeça e segurado na mão esquerda pendia ao longo do corpo. Encarquilhado pelo tempo ele era uma silhueta sofrida na porta da capelinha. Enquanto o padre engrolava seu latim, o escravo ora olhava o altar ora o chão ora o alto. E vez por outra batia a mão direita no peito, junto ao coração.
            Acabou a missa, caminho de volta poeirento, sol alto, fazendeiro perguntou:

_ Viu que beleza? Num é aquelas cantoria feia de senzala não.
_ Muito bonito sim sinhô. Nêgo gostô. Deus que pague.
_ Mas onde que você tava que num te vi?
_ Lá na porta, nhônhô.
_ Por que não entrou? Não deixei?
_ Porque nêgo ficô sem jeito, né...
_ Como assim?
_ É que num sei rezar como os branco e também porque vassuncê e todos mais tava cum saco nas costa, inté o padre, menorzinho ansim mas tava tamém. Eu olhei pra minhas costas não vi; daí num entrei.
_ Com’é que é? Saco?! Você tá é caducando nêgo, tá muito velho.
_ Verdade patrão, incrusive o do sinhô era dos maió...
_ Arre! Cala a boca. Chega disso. Vamos apertar o passo que sol tá começando a queimar e tô com fome.

            Mas o homem ficou cismado com aquela fala do escravo, estapafúrdia sim, mas parecia sincera.
            No fim da outra missa, o fazendeiro foi na sacristia e narrou o fato ao padre. Ele foi e respondeu:

_ ô meu filho, o seu escravo não está perturbado não, nem zombando. Ele está em estado de graça! Esses sacos que viu em nossas costas são os pecados que estamos carregando! Serve de alerta para nós todos... Pergunta ele, qual reza ele fez porque deve ser muito forte. Temos que aprendê-la. 

            Assim fez.

_ Nêgo, lembra aquele dia que você viu os sacos nas costas dos brancos na missa?
_ Sim, ioiô!
_ O quê que você rezou naquele dia?
_ Nêgo num sabe rezá, né, então oiava lá pra nosso sinhô pregado naquela cruiz grande, batia a mão no peito e falava: sinhô, seu nêgo tá aqui! Sinhô, seu nêgo tá aqui!”

Montagem em memória dos escravos.
Festa do Rosário, Passa Tempo/MG. 21/10/2013.
Notas e Créditos 

*Informante: Aloísio dos Santos, São João del-Rei/MG. Década de 1990. 
** Texto e fotografia: Ulisses Passarelli

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