Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 24 de junho de 2013

A Visita

A Visita [1]
Ulisses Passarelli

            Foi numa noite dos tempos de Natal, ou do comecinho de janeiro, com garoa manhosa e intermitente. Na casa de vô Aloísio, eu brincava no chão da sala com meus brinquedos novos. Os adultos se ocupavam de seus assuntos esquisitos.

            De repente o chamado estridente de um apito impôs o toque de vários instrumentos musicais e um grito firme chamou lá fora pelo dono da casa: “ôh...patrão! Olha só quem tá chegando!”

            Na carreira o menino de curioso foi ao portão e estancado pelo medo, se deparou com um monte de homens de chapéus enfeitados de fitas e flores, tocando uma música diferente; adiante uma bandeira colorida e ao seu lado uma figura extravagante, de roupa colorida e folgada no corpo, máscara horrenda, chapéu de cone, porrete à mão, dançando com trejeitos e fazendo sons estranhos: “ pruuuuuuu....” e gargalhando de tanto em tanto.

            Num instante eu ainda menino observei e noutro corri pra dentro. Tomado de uma mistura indescritível de pavor e curiosidade, me escondei num cômodo, de ouvido atento porém, olhando pelas gretas da velhíssima porta de tábuas.

            Os adultos da casa se agitaram _ “vamos, gente, a folia de Reis chegou! Abre lá...” _ pois o mestre já cantara da rua:

“ Vem abrir a sua porta
E acender a sua luz,
Hoje veio lhe visitar
Os mensageiros de Jesus.”

            O avô tomou a frente, virou a chave no cadeado ferrugento e trouxe atrás o portão de ferro trabalhado de duas bandas. Com uma genuflexão recebeu a bandeira, passou-a a vó Maria que a beijou e ofereceu a cada um dos presentes. Por essas alturas o menino já olhava de esgueio da quina do alpendre. Os visitantes foram convidados a entrar, sempre tocando e cantando, enquanto o mascarado dançava sem parar (e só ele dançava) _ “ dá licença nhônhô! Dá licença iaiá!”_ e foram até a sala.

            Havia um presépio armado, humilde e devoto, com bichinhos ao redor do Menino. “_Ôôô...que beleza! Olha só embaixador que encontramos!” e assim ajoelhou-se e tirou a máscara diante daquela Belém doméstica. Foi aí que o medo foi deixando o menino, seguro do lado humano do bastião da Folia de Reis.

            O mestre cantou o nascimento de Jesus e a visita dos Reis Magos, verso a verso, respondido pelos companheiros de folia numa voz fininha que ecoava pela sala cheia de lamentosos “ais”, delongando as notas como num eco. A bandeira já estava sob a cama de casa. Benção para a família.

“Que senhores são aqueles
Que en’vém beirando o mar?
É os três reis do oriente
Que Jesus vão adorar!”

            E pelos versos seguiam as lições morais:

“Bem podia Deus nascer
Num lençol de ouro fino
Para dar exemplo ao mundo
Nasceu pobre e pequenino.”

            Vencida a praxe religiosa, o bastião ergueu-se, recolocou a máscara e retomou a dança.

            O mestre voltou-se ao povo da casa e pediu em versos a oferta para a caridade. Deram algumas notas e foram agraciados com versos gentis que prometiam a paga celeste, até que, umas moedas em reservado foram entregues na sacolinha do bandeireiro com a recomendação de serem na intenção de um falecido. Respeitosamente ecoou...

“Essa oferta da saudade
Jesus Cristo anotou,
Uma jóia dessa casa
Os anjo pro céu levou...”

            O dono da casa a meia voz chegou-se ao mestre e convidou-o a tomar um café. Completou-se a harmonia das cordas e fole. “_ Viva Santos Reis! _ Viva!” Deixaram os chapéus e instrumentos junto à poltrona. Na cozinha uma breve oração para a benção da mesa. Descontração.  Os já satisfeitos com as quitandas foram lá pro alpendre pitar um cigarrinho de palha e entre baforadas surgiam comentários sobre a afinação da folia ou o jeito de tocar caixa, ou velhas lembranças, embaçadas como a fumaça do pito: “_ É sô, tempo bão era da folia do sô Zé Franguinho, folião de peso. Aquele era entendido nos fundamento!”

            O mestre apitou de volta lá na sala. A música retomou louvando a benesse:

“Lá no céu tem uma estrela
Que ilumina São José
Ela há de iluminar,
Quem nos deu tão bom café”.

            No “devorteio” dos instrumentos (interlúdio diriam os técnicos) o marungo de máscara peluda gritou pedindo licença, se podia fazer um agrado, quer dizer, um brinquedinho.

_ “Pode sim, xará!”
_“Então lá vai, patrão! Catuca moçada!”

E os instrumentos irromperam a pururuquinha, um ritmo afogueado, que fez com que o palhaço dançasse sobre o porrete que tinha posto no chão, em passos graciosos e cruzados, sem esbarrar na madeira, muito compassado e habilidoso. Só parou a música quando tirou o bastão do assoalho de tacos e o ergueu como sinal. Ofegante declamou com voz cavernosa:

“ O meu pai era João Caco,
Minha mãe era Caca Maria
Ajuntando caco com caco
Eu sô filho da cacaria...”

            E foi por essa linha afora, narrando palhaçadas de memória e de improviso, provocativo, porém respeitador. Todos se divertiam e até eu gostei, já sem medo, senão mesmo cativado pela novidade. Recebi até balas do embornal do palhaço.

Por fim, o tal pediu o dele:

“ _ ô meu patrãozinho!
_  Que foi bastião!
_Miserenobe, miserenobe, pelo amor de Deus me dá um cobre...”

            Vovô deu-lhe umas moedas de bom grado. 

“_Deus lhe pague padrinho!”
“_ô sinhá! Ô sinhá! Tô vendo ali de banda um punhado de banana naquele balainho lá do canto, senhora sabe como é que é... Tem lá em casa a minha dona Catirina, esganada que só, a mulecada tá com fome... Coisa e tal, tal coisa...
 _ Você não trabalha pra plantá não, pidão? (mas não era grosseria da vovó não, que faz parte da brincadeira embromar o bastião e no mais dar algo à folia é crença de fartura que retorna à casa).
_Oh, ah! Inté demais patroa! Vô contá como é que é...

Catirina casô comigo
Que eu sô bom trabalhadô,
Com chuva num vô na roça,
Com sol também num vô...

_ Ah! Num tem jeito com’ cê não... Toma essa penca.
_ Há,há! A criança chora é pra mamá, eu choro é pra ganhá! Deus me pague, Deus me ajude...”

            Cantou o folião pedindo a bandeira, que a hora era vencida. Outra família esperava a embaixada santa dos mensageiros de Jesus. Lá veio ela do quarto mais de dentro, balanceando nos braços de Maria, cheirosa e agraciada, de cômodo em cômodo, arrastando todos os males, expurgados por palavras inconfessáveis que os lábios de vovó balbuciavam. Eu vi tudo. Gravei tudo na mente.

            Todos beijaram seu pano já desbotado de andanças jornadeiras. Marcas de baton das fiéis maculavam o tecido. Raminhos secos de alecrim e manjericão ainda a perfumavam. Muitos devotos já receberam a bandeira de joelhos ao chão e enxugaram lágrimas em seu pano bento. Sobre a minha cabeça a bandeira foi passada, para dar juízo e boa sina.

            Entre o “muito obrigado” e o “viva” partiu na guia a bandeira em missão, qual a estrela do oriente, servindo de luz aos foliões, que naquele momento eram como uma reencarnação dos magos, a comitiva dos primeiros romeiros da cristandade.

            Saudade partiu. Saudade ficou. “Até para o ano, se Deus quiser!”. Fui dormir. Ainda não acordei. Muitos janeiros passaram mas continuo sonhando com o batido da caixa. É o mesmo compasso do meu coração.


O dono da casa recebe a bandeira da Folia de Reis ...
é o saudoso sr. Aloísio dos Santos, o Vô Aloísio do texto, avô materno do autor.
Autor: Ulisses Passarelli, 1993. 

*Obs.: 
- esta foto não fazia parte da publicação original. 
- o texto original não trasncorre na primeira pessoa: o "eu" era substituído por "Carlinhos", nome fictício. 
- texto escrito em 2010, sobre lembraças da década de 1970. 





[1] - Publicado pela Atitude Cultural impresso como cartilha com ilustrações de Bruno Grossi Begê, com o título de “Folia de Reis e Pastorinhas”, por uma grande gentileza de Alzira Agostini Haddad. Publicado também no site da Atitude Cultural: http://www.saojoaodelreitransparente.com.br/galleries/view/310   


Nenhum comentário:

Postar um comentário