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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 9 de junho de 2013

Conheça a origem das quadrilhas

Contradanças & Quadrilhas


            Não se sabe bem ao certo, se deduz, praticamente, que uma velha dança camponesa da Inglaterra feudal, então muito em voga, disseminou-se pela Europa, servindo de base para o desenvolvimento de várias outras expressões coreográficas.

            Teria sido durante a Guerra dos Cem Anos (séc.XIV e XV) que a França conheceu esta dança, então chamada “country dance” (dança do campo, rural), nome por demais genérico e logo afrancesado para “contredance”.

            Dançada por duas fileiras, uma de homens, outra de mulheres, frente a frente (vis a vis), em ritmo binário, melodias variáveis, ganhou grande importância na França nos séculos seguintes, bem como noutros países daquele continente, tendo inclusive inspirado obras de alguns compositores clássicos.

            A contredance francesa chegou a Portugal plausivelmente, trazida por soldados do período das guerras napoleônicas. Aclimatou-se fácil e ganhou grande popularidade com o nome aportuguesado em “contradança”[1]. Por sua vez foi trazida ao Brasil pelos colonos portugueses e se estabeleceu em várias regiões ganhando cores locais [2].

Aqui o contexto mais geral que assumiu foi o de uma suíte de danças, tal como em Matosinhos, bairro de São João del-Rei/MG, quando na Festa do Divino de 1899 apresentou-se com grande sucesso uma contradança, graças aos abnegados esforços do farmacêutico Desidério Rodarte [3].

Ela se modificou em outras danças ou lhes serviu de base ou modelo, mas em geral manteve o elemento rítmico e a fila dupla. Mas ora particularmente nos interessa os rumos tomados pela contradança na França. Possivelmente no final do século XVIII ou começo do seguinte, uma das suas modificações, dançada por quatro pares, ganhou o nome de “quatrille” (de quatre, quatro em francês). Alcançou enorme sucesso na corte francesa.

A França era um modelo aristocrático para outras cortes e não tardou que esta dança viesse ao mundo português, traduzida em “quadrilha”. A princípio manteve o formato original, sem canto, com acompanhamento instrumental, em 6/8 e 2/4, cinco partes com final agalopado e evoluções ordenadas pronunciadas em francês por um mandador (Portugal) ou marcador / marcante (Brasil).

Feita dança palaciana na época da Regência, da corte carioca, dos salões da alta sociedade, muito breve ganhou as camadas populares, difundindo-se profundamente pelo litoral e interior. Uma página magistral a respeito nos legou Luís da Câmara Cascudo, que de tão esclarecedora é uma consulta indispensável [4].

Pelo imenso interior brasileiro a quadrilha ganhou as mais variadas influências de outras danças regionais pré-existentes ou que chegaram depois. O francês da marcação se corrompeu, estropiado no linguajar sertanejo, ou mesmo cedeu espaço ao português coloquial; velhas marcações foram abandonadas, adaptadas ou substituídas por outras de criação nacional. A quadrilha original então desapareceu do Brasil, perdida no turbilhão das mudanças. A dinâmica imensa do folclore criou suas variantes:

- Lanceiros: de influência inglesa era uma modalidade de quadrilha. Existe um registro para o Amazonas [5], municípios de Manaus e Tefé. Dançavam com uma lança curta na mão, os pares se enfrentando, com entrada pomposa, trajes nas cores verde e amarelo: chapéu de palhinha, jaquetão e calção. Em Minas Gerais também foi conhecida.

- Solo-inglês: “espécie de lanceiros, muito dançado na Maioridade e no Segundo Império, na corte e nas províncias. Dançavam-no aos pares, havendo vênias, trocados de lugar e volteios” (Cascudo, op.cit. verbete: Solo-inglês). Desapareceu no fim do século XIX.

- Baile sifilítico ou sifilito: versão caricata da quadrilha na Bahia e Goiás, de que não se dispõe de muitas informações.

- Saruê: corruptela de “soirée”, sarau. Quadrilha registrada no Brasil Central, “misto de figuras das quadrilhas francesa e americana, com passos de danças originais do sertão, marcas estapafúrdias” (Cascudo, op.cit. verbete: Saruê. Baseado em Antônio Americano do Brasil, Cancioneiro de Trovas do Brasil Central, 1925).

- Esquinado: dança outrora popular no nordeste e sudeste do Brasil, desaparecida na primeira metade do século XX [6].

- Mana Chica: quadrilha muito peculiar irradiada a partir do norte fluminense[7] para o Espírito Santo[8] e Minas Gerais. Sua origem é atribuída ao município de Campos onde desenvolveu outras variantes regionais: mana Joana e maricota. Há uma marcação como a da quadrilha mas um acompanhamento com palmas e por fim um intenso sapateado, quase um desafio. Recolhi em 1996 graças à gentileza de uma senhora octagenária de Barbacena/MG, Dona Josefina, uma significativa versão:

Mana Chica, Mana Chica,  {BIS}
Mana Chica, Mana Chica,     {BIS}
Mana Chica do sertão, 
Mana Chica de Goiás,
Mana Chica me chamou      {BIS}
Ela montada em sua besta      {BIS}
E pegou na minha mão!
Meu burrinho rinchando atrás.

Ai... Mana Chica!   {BIS}
Aonde você vai?
Ela montada em sua besta,  {BIS}
Meu burrinho rinchando atrás.

Ainda outra quadra da mesma informante:

Eu joguei o barco n'água
eu avistei o remador;
Quando o barco foi virando,
Mana Chica me chamou!

- Numerada: tipo de quadrilha que se dançava em São João del-Rei com a particular característica dos dançantes irem aos poucos formando uma fila única, sob o comando do marcador, sempre se referindo a expressões ferroviárias: “locomotiva!” (o primeiro casal se perfilava), “vagão de carga” (outro casal aderia à fila) – sempre em movimento de balancê – “vagão de passageiros”, “guindaste”, “trem pagador”, “turma do lastro”, etc. A cada marcação, novo casal se punha na mesma fila, acoplando novos vagões e em seguida partiam em ritmo, fazendo uma marcha que simulava uma viagem de Maria-fumaça[9].

Quadrilha escolar.São João del-Rei/MG. Foto: álbum familiar, 1980.
 
            
              Desaparecidas as versões acima listadas sobreviveu porém aquela que teve de todas a maior capacidade adaptativa, a mais ampla aceitação popular: a quadrilha caipira, como é chamada no centro-sul do país ou quadrilha matuta, como se diz no nordeste.

            Guardando consigo a matriz da quadrilha francesa, permitiu um sem-número de variações regionais com novas marcações bem ao gosto interiorano, ganhando um ar brejeiro. Nas cidades ganhou mais força que nas vilas, com nítida influência popularesca, de letrados que nela imprimiram novo formato de valorização das tradições nacionais, num folclorismo [10]  evidente.

            Os trajes, os trejeitos, a contextualização busca então evocar tudo o que na cidade se julga camponês, caipira, matuto, caboclo, pois que, o homem da roça foi então configurado como um protótipo brasileiro. Há porém uma ambiguidade, posto que ao pé da letra há uma afetação, um exagero no representado, que caminha para a depreciação dos valores rurais, haja vista na zona rural as danças não transcorrerem como na cidade as representam. Não há roupas remendadas ou chapéus esfarrapados. Na roça quando vão para uma festa usam a melhor roupa. Ninguém então usa de trejeitos.

            Mas detalhes à parte, estes aspectos já se incorporaram ao universo das quadrilhas.

        É frequente a realização de um entremeio dramático chamado “casamento caipira”, um simulacro de cerimônia matrimonial, muito sarcástica e picaresca. O casal surge em cena trazido numa carroça ou charrete, ou mesmo a pé. Um dos quadrilheiros aparece trajado de padre, um sacerdote trapalhão; outro faz o sogro, violento, bruto, armado; o noivo é gaiato e malandro, faz de tudo para embromar o pai da noiva. Vem trajado com um terno surrado, pouco elegante. Para completar a trupe a noiva: figurada numa jovem com vestido branco, véu e grinalda, maquiagem exagerada, abestalhada, fazendo-se ora de assanhada ora de tímida. O quarteto encena de improviso um casamento forjado, com muita criatividade, humor e gaiatice. O pai não quer o casório, a noiva quer muito. O noivo tenta escapar e o padre não consegue celebrar. Por fim tem de fazer o casamento forçado pelo pai da noiva, sob ameaça de morte. Tudo acaba bem, embora na bagunça e a festa de casamento transcorre com a dança da quadrilha. Em Coronel Xavier Chaves/MG, na Vila Mendes, um grupo chamado “Arraiá dos Fundo” vem desempenhando uma quadrilha com o casamento caipira com uma extraordinária originalidade.

            Nos arredores de São João del-Rei vários grupos tem atividade relevante e podem ser vistos em diversas áreas, merecendo destaque as festas com quadrilhas na Colônia do Marçal e nas Águas Santas. Nos anos 1970 se tornaram memoráveis os encontros de quadrilha que aconteciam no Largo Tamandaré, sob os auspícios do saudoso Sr. Djalma Assis.

            Vinculadas aos festejos juninos e depois também julinos, as quadrilhas são presença certeira nas festas de Santo Antônio, São João Batista e São Pedro, e por vezes sem santo algum, mas sempre no inverno, ao lado das fogueiras, dos enfeites de arcos de bambu, de bandeirinhas, balões multicores, fogos de artifícios – traques, busca-pés, bombinhas. Todo um complexo cultural se formou em torno delas e mesmo econômico, girando fortemente recursos humanos e financeiros onde elas alcançaram maior popularidade. Movimentam o turismo como vemos a imprensa noticiar no nordeste brasileiro. Fabricantes de roupas, vendedores de adereços e de comidas típicas, tocadores de sanfona, zabumba, etc., sonorizadores, gravadores de músicas, propagandistas e até coreográfos e estilistas, encontraram nas quadrilhas um importante meio de renda. As quadrilhas estilizadas desenvolvem a cada ano temas próprios e absorvem novidades da cultura de massa, novos ritmos se sobrepondo aos forrós e arrasta-pés. Novos motivos estéticos para desenvolver os uniformes a cada ano: temas do cangaço, dos filmes de mocinho e bandido, de novelas televisivas, etc.

            Assim vemos a moda country, o cowboy cinematográfico e até a contemporaneidade funkeira, e outros mais, dominar a quadrilha urbana, sobretudo dos grandes centros. A quadrilha estilizada conserva um público jovem e surge nas escolas, bairros, associações ao contrário das quadrilhas típicas ou tradicionais, mais propriamente comunitárias.

            Umas e outras porém são um exemplo extraordinário da capacidade adaptativa do folclore, o poder da popularização. A quadrilha francesa não existe mais por aqui, mas a brasileira continua inabalável.
                     
Notas e Créditos


* Texto: Ulisses Passarelli

[1] - Outrossim aparece as grafias: “contra dança” e “contra-dança”. 
[2] - Ver a respeito: PASSARELLI, Ulisses. Contra-dança. Revista da Comissão Mineira de Folclore, n.23, ag.2002. Belo Horizonte: Comissão Mineira de Folclore, 183p. p.15-22.
[3] - Ver detalhes neste link: http://festadodivinosjdr.blogspot.com.br/2012/11/elementos-festivos_6783.html (blog Matosinhos: história & festas – post: Elementos Festivos)
[4] - CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. Verbete: Quadrilha.
[5] - MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro do Folclore Amazônico. Manaus: Sérgio Cardoso, 1964. v.1.p.93-125.
[6] - Ver a respeito: Esquinado: uma dança desaparecida. In: Tradições Populares das Vertentes (blog: folclorevertentes.blogspot.com).
[7] - FRADE, Cáscia. Folclore Brasileiro: Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE/CDFB, 1979.
[8] - NEVES, Guilherme Santos. Folclore Brasileiro: Espírito Santo. Rio de Janeiro: FUNARTE/CDFB, 1978.
[9] - Informante: Sr. Luís Santana (1929-2002), que a dançava no povoado do Pombal, neste município.
[10] - Ver a respeito o verbete “Festa Junina” na Wikipédia (acesso em 08/06/2013): http://pt.wikipedia.org/wiki/Festa_junina 

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