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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 27 de agosto de 2013

Munho Assombrado: o folclore dos moinhos de fubá

Fubá é uma farinha crua de milho. Um moinho artesanal montado no interior de uma pequena casa é o responsável por moer os grãos de milho, graças à , uma grande pedra circular giratória. A força motriz é gerada pela água e daí o povo insistentemente chamar o moinho de fubá de “munho d’água”. É matéria-prima da cozinha tradicional mineira para produção de mingau, maneco-sem-jaleco, angu, pastel de angu, bolos, broas, biscoitos. Fubá é comida muito abençoada, dizem sempre na zona rural.

Seu mecanismo é muito rude e ainda assim bastante engenhoso. A mó é presa a um eixo vertical, que a atravessa ao centro numa perfuração e se prende a ela por uma trava de ferro (segurelha). No outro extremo do eixo está preso a roda d'água, que transmite-lhe o movimento. Acima da pedra está uma caixa de madeira que contém o milho in natura (moega) e abaixo, outra caixa para colher o fubá (caixão). Uma haste vibratória em madeira, presa à moega age como uma válvula: a vibração do giro da pedra passa por ela e trepida a moega, que por uma canaleta deixa escorrer aos poucos os grãos ao centro da mó, caindo em sua abertura e sendo por ela triturados.

"Arriei o meu cavalo,
fui no munho buscar fubá, 
cheguei na porta do munho
balancei pra lá, pra cá. 

cheguei na porta do munho
balancei pra lá, pra cá;
na moega não tem milho,
no caixão não tem fubá..."
(Calango, Barbacena/MG, fev./1996)

A construção e a regulagem do moinho é uma ciência para poucos carapinas. Há os mestres em construí-los, que sabem escolher as madeiras adequadas, a forma de talha-las corretamente, fazer os encaixes. Nas roças há também artesãos que sabem escolher e picar a pedra corretamente para produzir a mó _ pedra circular usada para moer _ um trabalho tão meticuloso quanto difícil, lasca a lasca, manejando o "picão" (ferramenta de ferro com duas pontas), perfeitamente equilibrado o peso de todos os lados e definido o centro. Em São João del-Rei, no povoado do Caxambu havia uma família especialista nesta arte. Há ainda o trabalho braçal de abrir um valo que desvie parte da água de um córrego até a roda motriz, com inclinação tal que gere pressão suficiente para movê-la com velocidade e isto exige um justo cálculo de natureza prática. A água após o moinho corre de volta ao córrego sem poluição alguma. É um mecanismo não agressivo ao ambiente.

O moinho tem seu folclore. Vez por outra, quando a demanda entre congadeiros esquenta porque uma guarda de moçambique, um terno de catupé, um corte de vilão, um batalhão de congo, uma banda de marujos ou seja qual for a guarda está demorando muito no pé do mastro, sem dar lugar a outra que também quer chegar para a louvação; quando o capitão avista o outro junto ao mastro atravessando a bengala ou o tamborim de um lado a outro ou jogando algo por ali, logo cismado e alertando canta:

"_ O tatu tá no munho...
_ tá moendo fubá!"

O canto é dividido: o capitão canta o primeiro verso e o coro repete o segundo, repetindo-se indefinidamente. Na gíria congadeira "fubá" é sinônimo ou símbolo de feitiço, mandinga, magia. "Tatu" é alcunha pejorativa aplicada a um capitão rival. Assim já ouvimos em vários congados de São João del-Rei.

Muitas vezes ouvi dizer nas roças, que o munho é assombrado. Não se deve entrar nele de noite, de jeito nenhum. Meu avô, Aluísio dos Santos, dizia-me que é a morada do “pemba” (demônio).

Contou-me, que, certa vez, uma mulher foi à noite ao munho buscar um punhado de fubá para a janta, que o de dentro de casa tinha acabado. Com uma lamparina na mão, com sua chama tênue, bruxuleante, abriu o pequeno trinco e batendo o pé na porta a fez abrir. Entrou e sentiu o corpo arrepiar. Teve muito medo ao ouvir um estranho barulho. Chegou a rústica lamparina para ver o que era e qual não foi sua terrível surpresa ao ver um diabinho anão, dando cabeçadas num saco de fubá que estava recostado num canto, já todo furado por causa dos chifrinhos de garrote do capetinha. A infeliz correu desesperada, quase em estado de choque, chorando e gritando e nunca mais voltou a um moinho.

Outro grande informante aqui de São João del-Rei, sr. Luís Santana, falou-me de um sujeito que numa fazenda, indo “fora de hora” (tarde da noite) no munho, ao abrir a porta e botar a luz no pequeno cômodo, viu um demônio com corpo de moleque e cara de bode, de pé em cima de uma travessa sob o telhado velho.

Perguntei-lhe porque o munho era assombrado e “seu” Luís saiu-se com uma curiosa lenda que passo a narrar a seguir.

*  *  *

O munho d’água é assombrado de noite porque é uma invenção do satanás. O tal, “coisa ruim”, cheio de inveja dos poderes de Jesus, queria provar ao Divino Mestre que também era capaz, inteligente. Então criou a interessante engenhoca do moinho de fubá. Tudo pronto, funcionando, chamou Cristo para gabar-se de sua capacidade inventiva e mostrou-lhe como o mecanismo funcionava. Jesus olhou, gostou e aprovou, mas com uma restrição que fez, dizendo ao diabo: “_ só falta benzer: Pai, Filho e Espírito Santo!” E numa explosão fedorenta o demônio sumiu, mas toda noite ele volta para observar sua invenção.


Casinhola onde funciona um moinho de fubá ("munho d'água").
Brumado de Baixo (São João del-Rei/MG). As fotografias a seguir
mostram seus componentes. 

Detalhe da bica que traz o milho, abertura da mó, braço de vibração. 


Caixão com sua tampa. 

Interior da moega. 

Moega e mó montadas nos respectivos suportes

Parte inferior do moinho vendo-se o acabamento
do eixo com cintas metálicas. 


Roda d'água ("rodízio"), eixo ("mastro") e a bica ejetora ("sitía"), 
no fosso do moinho. 

Segurelha feita de ferro: acima, vista superior; ao centro, vista inferior;
em baixo, encaixe entalhado na face inferior da mó para encaixe de
uma segurelha.  

Mó - vista superior (acima) e vista inferior (abaixo).
Medidas: circunferência, 73 cm; abertura central, 10 cm; espessura na borda,
6 cm; espessura central, 11 cm.   

Mó - vista superior (acima) e vista inferior (abaixo).
Medidas: circunferência, 95 cm; abertura central, 10 cm; espessura na borda,
7cm; espessura central, 13,5 cm. 

Pedra-base de suporte de uma mó. Medidas: 160 cm de diâmetro geral;
abertura central, 15 cm de diâmetro; espessura, 18 cm; altura da borda (parcialmente quebrada), 14 cm.
Desenho esquemático da mó em vista superior, inferior e lateral;
vista da pedra base da mó. (pelo autor)

Notas e Créditos

* Texto e fotografias (26/07/2009): Ulisses Passarelli.
** Por uma grande gentileza do amigo César Reis, incluo neste postagem em 28/03/2021 uma foto poética de sua autoria, que retrata uma cena rural: o momento que o trabalhador vai ao munho à cavalo buscar fubá ensacado. A imagem foi captada na Caixa d'Água da Esperança (Tiradentes / MG), no moinho dos Silveira, em 2014. A ele manifestamos nossa gratidão e parabéns pela sensibilidade fotográfica. 




4 comentários:

  1. Literalmente, "fabuloso" este resgate, registro e divulgação. Ato generoso para a memória e para o imaginário popular de São João del-Rei!

    Grande abraço.

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  2. Muito, muito bom. Sou apaixonado por moinhos d'água. Há alguma outra postagem a respeito?

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    1. Grato pela visita e comentário. Volte a visitar este blog. Infelizmente não dispomos de outro texto específico sobre moinhos. Contudo, numa outra postagem abordamos o assunto dos engenhos populares sobre outro ângulo (inclusive moinhos):

      http://folclorevertentes.blogspot.com.br/2012/11/ergologia-do-folclore.html

      ENGENHOS & ENGENHOCAS (14 DE NOVEMBRO DE 2012)

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    2. Parabéns confrade pelo belo e bem documentado texto. Na minha infância em Montes Claros meu pai era proprietário de um tocado a eletricidade que funcionava no fundo do quintal e tinha uma longa cinta de borracha que fazia o moinho produzir o fubá. Boa lembrança.

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