Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Ar, terçol e bonitinha... que combinação é esta?

Boas e más forças nos chegam pelo ar. É o que assegura a crença popular.“Bons ares te trazem!”, dizemos alegremente quando chega-nos uma visita desejável e/ou providencial. Por outro lado, diante de uma cisma, logo se diz: "tem uma suspeita no ar..." 

Existe “ar” de tudo: ar dos olhos, ar de gripe, ar de inveja, etc., cada um afetando o que traz na própria designação, conforme a influência do meio etéreo e das poeiras que carrega. O “ar da noite” é aquele ambiente sombrio típico do anoitecer, com a queda da temperatura, brisa fresca, diminuição da luminosidade. O povo se precavê buscando então agasalho. Os antigos evitavam sair fora da casa, pois é o ar propício para se pegar um resfriado. Traz também os espíritos noturnos, assombros. Por isto fecham-se portas e janelas a partir das 18 horas, “hora da Ave-Maria”, tempo das almas, rezando-se a Nossa Senhora para livrar a casa dos males trazidos pelo ar da noite.

A crença no ar como transmissor de malefícios e doenças é bastante antiga e arraigada. No começo do século XIX a Câmara de São João del-Rei andaram às voltas com medidas que visassem combater uma epidemia que grassava a então vila. As autoridades convocaram os "professores desta Vila de Cirurgia e Medicina que por ora há no país para assentarem no melhor meio e modo da saúde pública." Os mesmos deram as orientações e os vereadores o determinaram em edital para a população: "farão fogueiras todas as noites de espaço em espaço nas quais farão queimar hervas aromáticas como são as resinosas, rosmaninhos, manjericão do campo, pinheiros e coqueiro da serra, sassafrás, disparar tiros, queimar pólvora em casas, lançar vinagre em ferros em brasa, tomar ponxes e vinagradas quentes, e uso de vegetais adubados com bastante vinagre, o que tudo foi assentado pelos ditos professores e se continuará durante a dita epidemia em refrigério e benefício dos corpos."

Está claro pela citação acima a intensão de produzir fumaças e vapores que por seu odor forte supostamente afastariam a causa da doença. Ainda hoje sob o rito da incensação, reside outrossim o objetivo de afastar os males.

Em Santa Cruz de Minas, dona Elvira Andrade de Salles benzia os ares da seguinte forma:

"(Fulano...), criatura de Deus, Deus quem te criou, Deus quem te gerou, Deus quem te livre dos males, dos ar ruim que seu corpo entrou: ar do sol, ar da lua, ar das estrelas, ar dos males, ar do dia, ar da noite, de todas as dores, todos os males, todos os ar ruim que tiver no teu corpo, que vai tudo pelas ondas do mar, com os poderes de Deus, da Virgem Maria, das três pessoas da Santíssima Trindade, com São Clemente. Como Deus e São Clemente não mente, essas dores, esses males, esses ar ruim que tiver no teu corpo, não há de ir adiante. Nossa Senhora do Desterro, que desterre esses males, esses ares e mande pelas ondas do mar. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém!"

Um dos tipos de ar, o ar de vento, que se manifesta como uma rajada, costuma segundo a crença, causar um lesão nodular nas pálpebras, com pequena elevação da pele, devido ao vento forte batendo nos olhos. Causa então o terçol, curando-se em geral por meio de benzeção. É dolorido e causa irritação local. Na verdade o terçol é um processo infeccioso.

Há porém outras formas de se tratá-lo na cultura popular. O tratamento tradicional para o terçol, terçolho ou hordéolo é feito passando-lhe uma aliança de ouro, que deve previamente ser esfregada sobre a pele em qualquer parte do corpo, até ser aquecida pela fricção e imediatamente se põe sem atritar sobre o nódulo. Ao esfriar repete-se, e assim, indefinidamente. Acredita-se que o calor do corpo transmitido pelo ouro cure o mal. Também acreditam que na falta da aliança serve esfregar-se bastante o dedo sobre uma superfície qualquer, até a pele aquecer por atrito e imediatamente aplicar a parte digital aquecida sobre o terçol.

Outra forma é esfregar sobre o terçol um dente de alho cortado, para que seu sumo molhe o local com o cuidado de não esbarrar no interior do olho, devido a grande ardência que causa.

Existe ainda a aplicação popular de arruda, macerada num copo com água filtrada, e aplicada por meio de algodão limpo, lavando as pálpebras afetadas. O povo acredita que se esse copo com água de arruda de molho passar a noite no sereno, será mais efetivo.

Uma simpatia difundida em São João del-Rei é passar sobre o olho afetado pelo terçol o rabo de uma gata duas vezes, em forma de cruz. Na mesma cidade outras simpatias são difundidas contra este mal; pingar nos olhos algumas gotas de "leite de peito", assim chamado o leite materno humano. Outra receita é esfregar sobre o terçol três grãos de milho e a seguir jogá-los por sobre os próprios ombros para trás, sem ver onde cairá, na direção de um galinheiro. Não se deve olhar para trás. As galinhas comendo o milho, "comem" também a infecção, uma forma de magia simpática por transferência do mal.

Um tipo especial de terçol é a chamada bonitinha, bolinha ou joaninha. Manifesta-se de forma muito semelhante, pelos sinais e sintomas, mas não é gerada pelo ar de vento. A bonitinha é causada quando se está comendo algo e uma mulher grávida vê o alimento e não lhe é oferecido. Basta outrossim a grávida desejar aquela comida e não pedir por vergonha que também se pega a bonitinha nos olhos. Cura-se com uma simpatia, pedindo comida por caridade na casa de três mulheres chamadas Maria. Prende-se esta superstição ao tabu das gestantes.

Por fim é necessário ressaltar que este blog não incentiva nem recomenda a execução das técnicas e remédios da medicina popular, devido aos eventuais riscos à saúde. Um médico deve ser sempre procurado. Apenas registra-se as práticas folclóricas pelo seu valor etnográfico e como mecanismo de valorização da cultura popular, alertando para que o uso pode gerar malefícios para a saúde. 


A seta indica a presença de sinais de um terçol, 
segundo entendimento da cultura popular. 

Referências Bibliográficas

GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ, 2010. 260p. p.111 e 112.

Notas e Créditos

*Obs.: informações colhidas em São João del-Rei (1999; 2014) e Santa Cruz de Minas, (1997).
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografia: Iago C.S. Passarelli 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Algumas crenças sobre a urina

O universo da cultura popular possui algumas tradições sobre a urina (mijo ou xixi, nos dizeres populares), aqui apontadas como elementos da cultura e não da medicina, que demanda longos estudos bibliográficos e pesquisa científica, laboratorial e clínica, com aprimorados testes. 

É usada como remédio contra inflamação de machucados, sobretudo aqueles causados por objetos metálicos enferrujados. As feridas são banhadas com uma infusão de urina e fumo de rolo desfiado, preparada numa bacia. Este preparado também é usado contra picada de insetos. Esta receita escatológica terá maior eficácia se for colhida a primeira urina da manhã e ainda mais se for de uma criança abaixo de 9 anos. Outro uso como remédio é para tratamento de rachaduras no calcanhar, passando-se urina de bebê, segundo uso em São João del-Rei na década de 1950, quando era comum nas crianças após uso generalizado de tamancos de madeira. 

O ato de urinar sobre algo é sinal de desprezo. “Ainda vou mijar na sua cova” é uma expressão popular. Indica que o outro a quem se dirige morrerá primeiro. 

Sonhar com urina, ou que se está em micção é índice de purificação espiritual; sinal de descarga das impurezas imateriais.  

A urina possui na tradição popular uma ação anti-feitiço: ela corta as piores mandingas. Se for derramada sobre um despacho ou objeto, neutraliza o suposto mal ali contido. Uma pessoa passando muito mal por causa de magia feita contra ela encontrará recurso pingando-se três gotas de urina em sua boca, ou uma gota sobre cada pé descalço. 

Essas são as crenças sobre a urina, que ouvi de populares na tricentenária cidade de São João del-Rei, decerto conhecidas em muitos outros rincões brasileiros, herdeiras que são de preceitos perdidos na distância temporal.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Este Blog não recomenda o uso de nenhuma substância para qualquer tipo de tratamento, devido aos eventuais riscos à saúde, tão pouco a urina como remédio, devendo-se sempre buscar orientação médica. O registro de uso neste texto tem valor unicamente etnográfico, como tradição popular, sem fundamento científico. 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Jubileu de 1922

No distante setembro de 1922, um jornal de São João del-Rei noticiava o êxito da festa jubilar do Senhor Bom Jesus de Matosinhos nesta cidade. O Acção Social, era um órgão de imprensa fortemente eivado pelo espírito religioso romanizador, tendo à dianteira como redator o Padre Gustavo Ernesto Coelho, o memorável fitoterapeuta. 

A notícia sobre a festa revela um evento concorrido, em nove dias preparatórios e um dia principal, marcado por solene missa cantada, procissão do Santíssimo Sacramento no Largo de Matosinhos, destacado sermão à entrada processional, proferido pelo eloquente Padre Antônio Carlos Rodrigues. Concluiu-se a festa com bênção do Santíssimo Sacramento e Te-Deum Laudamus. Para maior efeito dramático as girândolas de fogos de artifício pipocaram no ar, bem como houve o troar dos sinos. O povo eufórico participou intensamente da comunhão eucarística, noticiada em números, como convinha ao ideal católico em voga. 

Uma promessa ficou por fim plantada para 1923, pela nova mesa administrativa, com o festeiro, Coronel J. Severiano da Silva à testa: um jubileu igual ao de Congonhas do Campo!  



Notas e Créditos

* Texto e fotomontagens: Ulisses Passarelli
** Fonte: Acervo digital da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida, São João del-Rei/MG

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O cabelo na tradição popular

O cabelo é um símbolo de força, a exemplo do hercúleo Sansão bíblico (Livro dos Juízes, capítulo 13 e seguintes), do qual toda força procedia de sua vasta cabeleira. Dalila traiçoeiramente o seduziu, descobriu seu segredo, embriagou-o e cortou seu cabelo. Enfraquecido foi vitimado pelos filisteus. 

O Deuteronômio, no vigésimo primeiro capítulo prescrevia aos hebreus raspar a cabeça e cortar as unhas das prisioneiras de guerra que acaso quisessem tomar por esposas. Era também uma prática de luto. Já o Livro dos Números, no capítulo 6, tratando da lei sobre os nazarenos, determinava aos fiéis que quisessem declarar voto de nazarenato a interdição do corte dos cabelos até o dia da consagração: "a navalha não passará pela sua cabeça" ... "será santo, deixando crescer livremente os cabelos de sua cabeça." (versículo 5)

É muito vasto o folclore do cabelo. Nos folguedos populares é costume alguns personagens usarem tranças postiças, conforme registros dos folcloristas no nordeste brasileiro e como mostra as fotos abaixo de folias dos Campos das Vertentes, feitas com pelos de rabo de cavalo.

Trança em palhaço de folias de Reis: São Sebastião da Vitória (São João del-Rei) 
27/01/2014.  
   

Trança em palhaço de folias de Reis:Conceição da Barra de Minas. 27/01/2014.

Observar também o flagrante abaixo, imagem tomada de um grupo de congado:

Trança em caboclo da Guarda Divino Espírito Santo,
Bairro Nova Cintra, Belo Horizonte/MG. 27/04/2014.
É costume antiquíssimo consagrar o cabelo: deixá-lo crescer e depois cortá-lo como oferenda.

Certas tonsuras são específicas de algumas concepções religiosas e etnias. Entre os ex-votos encontram-se mechas entregues nas salas de milagres. Outro exemplo é do cabelo humano especialmente reservado por longo tempo pelo fiel, para ser cortado e ajustado à cabeça dos santos barrocos, fazendo as vezes de cabelo da imagem.

Senhor dos Passos, com belos cabelos cacheados.
Passinho da Rua Padre José Maria Xavier,
São João del-Rei/MG, 17/04/2014.

Nos terreiros de umbanda vê-se com frequência a cena das mulheres que estão na gira soltando os cabelos presos antes da incorporação do guia. No geral observa-se que se a médium mantiver o cabelo preso a entidade a influencia fortemente, mas tem dificuldades para incorporar.

O cabelo povoa o imaginário popular servindo de inspiração para composições poéticas de nosso refraneiro e cancioneiro. O saudoso capitão de congado José Camilo da Silva, por volta de 1994 cantou-me a seguinte peça de moçambique, dizendo-a muito antiga, cantada pelo Capitão "Barão", de um grupo de Ritápolis, extinto a décadas:

Maria Colina,
quando te chamar, vem cá,
passa o pente no cabelo,
deixa o cabelo anelar...

No Rio Grande,
deixa o povo sossegar!

O tratamento dos cabelos se faz na medicina popular com ervas específicas. Para cabelos ressecados, quebradiços, usam esfregar um unguento à base de mel, com babosa ou polpa de abacate; para fraqueza das raízes, com queda, o banho da infusão das folhas do jaborandi (*) (tem o falso e o verdadeiro, este mais eficaz), das matas de galeria (ciliar), e do murici-branco, dos cerrados. O tratamento de piolhos procede-se com um banho de vinagre. Se a infestação é muito forte e não melhora, procede-se à simpatia de pegar três piolhos e colocar dentro de uma caixinha de fósforos e despachar numa encruzilhada, pedindo para levar embora esses parasitas. Em pouco tempo a pessoa se vê livre deles. O tratamento de caspas faz-se com sumo de limão. Este blog apenas registra o costume popular, mas não aconselha sua prática, que pode eventualmente prejudicar a saúde.

Murici-branco. Chapadão, Serra de São José.
Tiradentes/MG, 31/05/2014.
Jaborandi-verdadeiro. Brumado de Cima (São João del-Rei/MG).
Mata ciliar do córrego local,11/07/2015. 

Jaborandi-falso. Pombal (São João del-Rei/MG).
Mata ciliar do Rio das Mortes, 12/04/2014. 


Para cortar o cabelo algumas pessoas observam a fase da lua conforme o resultado pretendido: cortá-los na cheia, preserva a vitalidade habitual; na lua nova, não há influência; na minguante o crescimento será lento e tende a ralear a cabeleira; na lua crescente o cabelo se avoluma e cresce rápido. Assim reza a crendice, como anotei em São João del-Rei.

Na crendice popular o cabelo guarda a essência carnal da pessoa. Por isto, em concepção anímica, feitiços feitos em fios atingem por conseguinte a própria pessoa a quem o cabelo pertencia. A partir deste princípio, por temor, muitos não cortam o cabelo em qualquer barbearia ou então, pedem ao profissional o favor de recolher as aparas e embrulhar. A pessoa então leva consigo para dispensar onde melhor convier.

Há quem queime os cabelos cortados, por praticidade, mas os crédulos invalidam esta ação dizendo-a geradora de “cabeça quente”. A pessoa fica nervosa, agitada, com cefaleia, sem motivo aparente. Recomenda-se assim jogar todo resíduo do corte numa moita de bananeira, para ficar com a “cabeça fresca”.

Alguns homens não gostam de cortar o cabelo com mulheres, supondo que a mão feminina sobre a cabeça masculina representa dali por diante um domínio, ou seja, o homem enfraquecido passará a ser subjugado pelas mulheres, decerto uma sobrevivência hodierna do mito de Sansão.


Notas e Créditos

* Um anúncio do antigo jornal O Repórter, n.23, de 27/06/1907, publicado em São João del-Rei, dizia expressamente: "A JABORANDINA é a locção mais preferida pelos freguezes do Salão Santos; extingue por completo a caspa; á venda neste salão." Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: Iago Christino Salles Passarelli (palhaços; jaborandi-verdadeiro); Ulisses Passarelli (Sr.dos Passos, jaborandi-falso, murici)

domingo, 26 de janeiro de 2014

15º Encontro de Folias de Reis de Mercês de Água Limpa

Aconteceu em Mercês de Água Limpa, a tradicional "Capelinha", distrito de São Tiago/MG, neste domingo, dia 26 de janeiro de 2014, o 15º Encontro de Folias de Reis, sob a coordenação de Jorge Geraldo Canaan, carinhosamente conhecido por "Jorginho". 

Terra de Nossa Senhora das Mercês, Capelinha reuniu cerca de 26 grupos de toda a cercania e até de mais distante, que durante a parte da manhã, logo ao chegar, receberam farto café da manhã no Salão Paroquial "Monsenhor Elói" e a seguir visitaram as casas, comércio, ruas e igreja daquela comunidade, que apoiou sensivelmente o evento. 

Após o almoço, servido na escola local, bastante elogiado pela qualidade e fartura, os grupos se deslocaram para a praça ao redor do palanque. Ali, Jorginho fez abertura convidando as autoridades do poder executivo e legislativo do município, além do pároco, que deu uma bênção aos grupos e proferiu palavras de valorização desta tradição. Cumpre notar que houve apoio da prefeitura e as palavras ao microfone foram de elogio às folias e foliões, focando no estímulo e continuidade. 

Na sequência cada grupo se apresentou para uma platéia numerosa, atenta e participativa, não obstante o calor inclemente. 

É mister registrar a presença do folclorista Affonso Furtado, fundador e diretor da Casa Santos Reis, de Manuel Duarte (Rio das Flores/RJ), incansável entusiasta e estudioso dos reisados brasileiros, que tem fomentado uma equipe de estudiosos e colaboradores que visam preservar e difundir as tradições reiseiras. Dentre eles, esteve presente Odair Martins Lemes, Vice-presidente da Litricor (Liga Tricordiana de Folias de Reis), de Três Corações, sul de Minas. 

Assim passou-se um dia notável em Capelinha, vendo-se muitos jovens marungos (palhaços de folia) e as ruas tomadas pelas caixas, sanfonas, cordofones... música, cores, danças... de São Sebastião da Vitória (São João del-Rei), de Passa Tempo, Oliveira, São Tiago, Conceição da Barra de Minas, Bom Sucesso, São João del-Rei (Águas Férreas e Bom Pastor), Santo Antônio do Amparo, Carmópolis de Minas, Itaguara, Coqueiros (Nazareno), Resende Costa, Ribeirão Vermelho, etc. Abaixo seguem algumas imagens fotográficas tomadas durante o Encontro. 

 O blog TRADIÇÕES POPULARES DAS VERTENTES deixa um sincero parabéns para o Jorginho, esforçadíssimo festeiro. Santos Reis guie seus passos e dê forças para o 16º Encontro. 

Uma procissão em Capelinha. Fotografia gentilmente cedida para reprodução por Jorginho, 
segundo o qual data de 1930. Autor não identificado. 

O público, a praça e o palanque.

Folia de São Sebastião, do distrito são-joanense de São Sebastião da Vitória.

Igreja Matriz de Nossa Senhora das Mercês.

Cartaz e quadro de anúncio: divulgação da festa.

Aspecto parcial do almoço dos folieiros.

Um dos grupos de folia vindos de Bom Sucesso.

Um palhaço da folia da cidade de São Tiago.

Affonso Furtado (esquerda) e Odair Lemes (direita).
  
O coordenador, Jorginho.


* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotos: Iago C.S. Passarelli






quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Fieira: à guisa de verbete

1- Polia, correia, cordão que liga rodas e roldanas no rústico maquinário popular, fazendo a transmissão do movimento, como nas rocas e raladores de mandioca ("caititu"). 

2- Fila indiana, disposição de pessoas, objetos, animais um após ao outro. Enfileirado, “fiêra de gente”. Neste sentido há este canto de congo

Marungo do mar, 
que brinca bem, 
puxa fiêra, 
reinado en’vém! 
(São Gonçalo do Amarante, São João del-Rei, 2011)


No distrito são-joanense de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno este canto tem a variante "Marinheiro do mar" no primeiro verso. Parece ser uma citação ao personagem mouro. Analogia de suas vestes vermelhas e o costume de correr atrás das crianças com o marungo das folias (palhaço). 

3- “Enfieira”, “enfiada de peixes”. Na técnica de pesca artesanal de subsistência, certa quantia de peixes presos a um cordão, arame ou ramo desfolhado, passando-se pela abertura das guelras e saindo pela boca, ficando os peixes sobrepostos. No extremo oposto deve haver um batente, tal como um gancho ou nó, impedindo que o primeiro peixe enfiado saia desarmando a enfieira. No nordeste brasileiro dizem embiricica, sendo porém mais aprimorada: o cordão tem um dos extremos preso a um ferrinho ou arame usado para trespassar o peixe e se fincar no barranco do rio, à beira d’água. O outro extremo é preso a uma bóia. Assim o peixe permanece vivo dentro da água, sem fugir, preso entre a bóia e o finco. A enfieira e a embiricica são heranças indígenas, que as chamavam pirapixama. É uma opção improvisada, substituindo o tradicional samburá.

Carás e lambaris numa enfieira.
* Texto e fotos: Ulisses Passarelli

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Festa de São Sebastião: São João del-Rei

Alguns aspectos do último dia do festejo do Santo Mártir Guerreiro, o querido e glorioso São Sebastião, na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar em São João del-Rei, neste dia 20 de janeiro de 2014. 

1- Banda Theodoro de Faria diante da catedral em festa.

2- A tricentenária imagem de São Sebastião em seu andor. 

3- Diante do casario histórico passa a procissão com suas lanternas e irmandades. 
4- O pálio com a relíquia sagrada.



5- Folia de São Sebastião do Mestre João Matias, do Bairro Guarda-mor. 

6- Fiéis acompanham atentamente a cantoria folieira. 

* Obs.: Para saber mais detalhes vide: São João del-Rei está em festa. Viva São Sebastião!   
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotos: 3 e 6, Ulisses Passarelli; demais, Iago C.S. Passarelli, 20/01/2014. 
**** Notícias do ano de 1902 indicam que nessa festa naquele na Igreja do Pilar, tocou a Orquestra Ribeiro Bastos e a "banda do 28, graciosamente cedida pelo sr. coronel commandante" (Fonte: jornal O Combate, n.143, 22/01/1902, site da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida, São João del-Rei)

domingo, 19 de janeiro de 2014

A força das matas

A mescla cultural e religiosa extraordinária do Brasil, gerou em conjunto a certas características naturais do país, um sistema de crenças que atribui grande irradiação de forças espirituais aos domínios elementares da natureza: matas, serras, águas, campinas, etc.

Nossa imensa cobertura florestal e a multifacetada sabedoria indígena, impressionaram profundamente a alma popular, de conjunto aos saberes africanos trazidos pelos escravos e também da Europa, via colonizadores portugueses. 

Assim a mitologia indígena, no caldeirão da mestiçagem, nos legou nomes como Mãe da Lua (personificada na ave caprimulgiforme urutau), Mãe do Ouro (figurada no raio-globular, fenômeno meteorológico), Mãe d'Água (que sincretizou-se com os orixás femininos da água, que a África nos deu e com as sereias do Velho Mundo). Nos meios populares essas "mães" são égides protetoras de elementos naturais, cujos nomes aludem de imediato à área de seu domínio: Mãe da Mata, Mãe da Pedreira, Mãe da Cachoeira, etc. A ideia básica de entidades assim concebidas é de origem indígena. Os índios acreditavam nas cis, mães da natureza, sem necessariamente haver um pai.

Assim, como uma crença, passaram à cultura popular. Aqui mesmo nos Campos das Vertentes são correntes tais nomes e em São João del-Rei ouvi falar de Catambaiá, entidade considerada a "Vovó das Matas", talvez uma ancestral matriarca indígena.

Mas não apenas a ascendência ameraba nos deixou essas influências. O africano banto trouxe-nos a imagem do caçador divinizado, Mutalambô, que garante segurança e fartura tribal. Seu nome trazido de tão longe ainda é invocado em nossos terreiros de matrizes afro.

Oxóssi é um orixá, masculino, muito prestigiado, respeitadíssimo, cujo domínio é a floresta. É o chefe dos Caboclos e Caboclas (espíritos de antigos índios, tornados guias), coordenando as forças das matas, daí sua cor votiva ser em geral o verde. Recebe o oriki de “Rei das Matas” e o título de “Alaketu”, que significa rei, governador, líder do povo ketu (uma nação iorubá, hoje vinculada ao Benim). É considerado na espiritualidade como irmão caçula de Ogum, com quem tem grande afinidade. O sincretismo servirá de exemplo dessa proximidade: na Bahia Oxóssi  é sincretizado com São Jorge, enquanto no Rio de Janeiro e Minas Gerais o é com São Sebastião; Ogum é o contrário – São Sebastião na Bahia, São Jorge no Rio e em Minas. 

Janeiro é o mês da festa dos caboclos. O intenso veranico desse período é quebrado por algumas chuvas na semana que antecede o dia de São Sebastião. Essas águas pluviais em especial são chamadas "Comida de Oxóssi". Nas matas costuma-se ver nessa época oferendas de frutas estendidas sobre panos verdes, contidas em cestos artesanais; cabaças com mel, cuités com cerveja preta, morangas abertas por um tampo e recheadas de frutos, "curutos" (charutos), etc. 

Segundo a crença haveriam três oxóssis: este, propriamente dito (adulto, maduro), um outro, mais jovem, chamado Inlê e o terceiro, mais velho, chamado Odé. Outros porém consideram Inlê e Odé distintos de Oxóssi, embora os três sejam orixás mateiros.  Inlê tem por ferramenta o "amparo", que é uma chibata de três tiras de couro e espiritualmente é esposo de Oxum. Odé é sincretizado com São Bento e domina os animais peçonhentos, os bichos perigosos do mato. Tem grande força moral e doutrinadora.  

Ossãe, cuja grafia também aparece como “Ossanha”, Ossanyim”, “Orixaim” é um orixá das matas, solitário e retraído, filho de Oxalufã e Nanã, senhor das folhas, das plantas, da fitoterapia, da homeopatia. Conhece todas as plantas medicinais, os remédios da flora e as ervas sagradas, para fazer e desfazer qualquer feitiço, para apaziguar questões de quizila com os orixás ou para qualquer necessidade. Ossãe é quem ensina às demais entidades o uso dos vegetais. Sincretizado com Santo Onofre embora também cite-se São Benedito, menos apropriado para a aproximação. Só pode figurar no gongá ou no peji sob a forma sincrética, já que seu assento é feito oculto na mata virgem, sendo seu culto um tanto secreto e vedado à assistência dos terreiros. Seu ferro é uma árvore estilizada com a alegoria de um pássaro sobre uma das pontas. Somente pessoas de mediunidade forte e pura conseguem ter a visão deste orixá, sendo raríssimos os relatos de seu avistamento: aparece como uma figura humanóide camuflada de verde com a vegetação, semi-transparente, de aparência gelatinosa.

Com outros nomes relacionados às etnias de origem são conhecidas ainda mais entidades e conforme a cultura ou região à qual se relacionam podem ter características sincréticas diferentes das aqui apresentadas. As que foram citadas acima referenciam em linhas gerais as concepções religiosas e culturais que prevalecem nesta área do centro-sul mineiro, focalizada ou antes polarizada em São João del-Rei. 

O caráter geral que se impõe é o respeito às matas, como criação divina e domínio de entidades diversas, legados de diversos povos, inspirando a medicina popular, os rituais, danças, cantos...

"Lá na mata tem flores,
tem o rosário de Nossa Senhora,
padroeiro é São Benedito,
que nos valha nessa hora!"
(Ponto de terreiro, São João del-Rei, 1991) 


Mata da Limeira, Brumado de Cima (São João del-Rei/MG), 2010.

Notas e Créditos

* Texto e foto: Ulisses Passarelli

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Notícias da Maria Fumaça

Quem vê hoje superficialmente o complexo ferroviário desta cidade não imagina o que de fato ele foi e o que representou para os moradores. As oficinas ferroviárias da cidade de São João del-Rei atingiram uma elevada atividade. Chegou-se a construir locomotivas por aqui, como comprova esta notícia jornalística:

“sob a direção do mecânico Eduardo Moreira, nas oficinas da EFOM, de São João del-Rei, foi construída totalmente a locomotiva nº 55. A única peça que veio de fora (Ribeirão Vermelho), foi o cilindro, assim mesmo, sendo defeituoso, foi consertado por nossos operários.” (Fonte: O S. João d’El-Rey, n.30, 07/10/1920).

Referências desta estirpe enchiam de orgulho os são-joanenses, muitos dos quais partícipes dessas conquistas. Os muitos jornais publicados nesta tradicionalista cidade mineira davam conta para júbilo da população de melhoramentos aprovados para o sistema ferroviário, representativos de um progresso intenso, como a inauguração nos meados de 1915 do Ramal de Barra Mansa da Ferrovia Oeste de Minas (EFOM), pelo qual se iria ao Rio de Janeiro em um dia. Outra notícia auspiciosa da mesma fonte informava que a 29 de maio daquele ano inaugurar-se-ia o túnel de passagem dos trens da Rede Sul Mineira (Lavras – Três Corações). (Fonte: A Tribuna, n.49, 13/06/1915.). As conexões ferroviárias em uma malha eficaz de transportes sobre trilhos permitiam que também o são-joanense usufruísse desses melhoramentos ainda que distantes. Outro exemplo: 

“O Ministro da Viação autorizou alargamento da Oéste de Minas no trecho que vai de Aureliano Mourão a Ribeirão Vermelho”. (Fonte: A Opinião, n.14, 21/08/1907)

Desta forma os antigos jornais da cidade são uma importante fonte de pesquisa histórica das ferrovias do país. Revendo suas amareladas páginas na busca desses vestígios nos deparamos por vezes com notícias tristes também:

"Desastre. O trabalhador portuguez Joaquim Ferreira Portella estando hoje no serviço de tirar pedras para o hotel que foi mandado construir nesta cidade pela companhia Oeste de Minas, recebeu sobre a cabeça uma pedra que abriu-lhe o craneo ao meio deixando á vista o cérebro. Foi transportado em braços para o hospital” (Fonte: A Pátria Mineira, n.5, 13/06/1889).

Exemplo de notícia sobre a Ferrovia Oeste de Minas num antigo jornal de São João del-Rei.

O trem marcou profundamente nossa alma. O carinhoso nome de "Maria Fumaça" aplicado às locomotivas a vapor tem um inegável fundo afetivo. É mais que um apelido, uma figura de linguagem. Não é para menos. O “trem de ferro” foi um agente difusor de cultura por toda vasta região ocupada pelos trilhos. 

Sua chegada no fim do século XIX representou um diferencial de progresso e marcou a vida social como nova época. Agilizou e fomentou o escoamento da produção agro-pecuária e industrial e trouxe consigo novos produtos e técnicas de construção e do fazer. Ao longo dos trilhos os povoados cresceram, empregos foram gerados, famílias foram criadas sob sua égide: histórias e estórias existem aos montes na memória popular por onde passou um dia a ferrovia, relatando a fartura de seu tempo e as gerações dela dependente, tipo: meu avô foi chefe de estação, meu pai foi guarda-freio, eu fui foguista, meu tio era ferroviário, meu irmão mais velho também... 

Os maquinistas tinham uma espécie de linguagem de sinais pelo silvo das locomotivas, o que se depreende de seus depoimentos. O apito característico de cada máquina e a maneira particular de apitar de cada um indicavam a chegada deste ou daquele trem ou maquinista e eram sua identidade. O povo se acostumava com a musicalidade de cada uma e com o ouvido treinado arriscava o palpite do número das máquinas, mesmo antes de vê-las, ao ouvir ainda longe um apito: a 38 está chegando! É a 43, do sr.fulano!

Contam casos de maquinista que tendo uma concubina morando próximo à beira da linha ao passar diante de sua casa apitava o trem de forma diferente e convencionada, para avisá-la de sua chegada à cidade. 

Dentro deste contexto os apitos de trens, tais como os toques dos sinos, os dos berrantes dos boiadeiros e os avisos dados por fogos de artifício são linguagens de sons que se perpetuam informalmente e fazem parte da folk-comunicação.


Locomotiva nº 41 da EFOM nas imediações do Sutil, em São João del-Rei/MG, 2011.

Notas e Créditos

* Texto, fotografia e foto-montagem: Ulisses Passarelli
** Para saber mais a respeito acesse os links abaixo:

A Ferrovia
A Chegada da Maria Fumaça
O Trenzinho das Águas
A Oeste de Minas e Matosinhos
EFOM: algumas glórias do passado
Pontilhão do Elvas
Saudades Ferroviárias
Coqueiros: estação restaurada!
Maria Fumaça












terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Pai João

Das heranças culturais do período econômico e histórico da produção escravocrata, uma das mais arraigadas é a dos "negros velhos". Com esse nome passou para a cultura popular a imagem do africano ou seu descendente, já idoso, trazendo no corpo os estigmas dos castigos das senzalas, as cicatrizes, o andar trôpego, o olhar desconfiado, a fala engrolada mesclando a linguagem popular com palavras dialetais; imensa sabedoria, inteligência, calma para alcançar os objetivos. Pertinaz, goza também da fama de curandeiro, sabedor dos mistérios espirituais, grande devoto do rosário, senhor absoluto dos congados e folias.

Este estereótipo passível de mais qualificativos, goza de tremendo respeito nos meios populares e é sempre muito querido, não raro tratado carinhosamente pelo cognome de "vô" ou "vovô".

Muitas são as estórias que lhes rodeiam e tematizam. Algumas singelas revelam o sofrimento dos escravos; outras, pendem a revelar a perspicácia em vencer obstáculos.

Neste contexto folclórico que ora se aborda, as questões racistas e discriminadoras felizmente passam longe. O conteúdo valoriza a sua contribuição étnica, cultural, humana, religiosa, social e moral.

Não é raro que estes personagens venham com o nome de "pai", que tal como o de avô, já citado, denotam carinho, proximidade, confiança, parentesco, proteção, filiação, ligação, sintonia.

Dentre tantos nomes um dos mais populares dentre os chamados negros velhos é o de Pai João, tema deste post. Há pelo menos quatro sentidos para a denominação em foco: 01- guia, entidade espiritual; 02- personagem de algumas queimas de judas; 03- personagem de certas folias de Reis; 04- personagem fictício de uma série de contos populares. Passemos em rápida revista cada um deles.

01- Em alguns terreiros de umbanda, Pai João é o nome de diversas entidades espirituais da chamada Linha Africana, que vem acrescidos de qualificativos de identificação: Pai João de Angola, Pai João do Congo, ... de Minas, da Mata, da Calunga, Serrador, do Cruzeiro, etc. Vem aos terreiros incorporar nos médiuns e exercer trabalhos espirituais em favor dos filhos de fé. Mas ora não é objetivo traçado enveredar por esse viés (*).

02- Apenas de passagem é mister recordar que existe também um personagem  humano cômico, mascarado, espécie de guardião da Chácara do Judas e do próprio boneco. Veste-se com roupas velhas, rasgadas, remendadas, puídas, do avesso, alpercatas ou descalço, botinas em frangalhos, chapéu de palha, máscara na cara, relho na mão. Pai João impede que as crianças invadam a chácara e roubem as prendas do Judas, antes do boneco estourar. Uma vez estourado pelas bombas, libera à agitação da petizada, que pega todos os pertences do Judas. Pai João aborda os presentes, falando com voz disfarçada e cavernosa, pede dinheiro, bebida, cigarro. Para os automóveis e com a desculpa de angariar algum dinheiro, faz-se de guarda de trânsito, inspecionando as condições do veículo e pedindo para ver os documentos, fazendo sempre comentários jocosos. Por vezes surgem dois ou três destes mascarados na festa da queima do boneco. Costume hoje raríssimo só encontra refúgio em pouquíssimas localidades rurais. Ainda é tradicional no arraial do Glória (Ritápolis) e também houve em São João del-Rei, cidade e no distrito de São Miguel do Cajuru. Nesta acepção o Pai João encontra par nos “caboclos”, mascarados que cercam o Judas no Alto Oeste Potiguar (Major Sales), e os “caretas” do sertão cearence central, Piauí e Tocantins.

03- Pai João é ou era ainda outro personagem mascarados que acompanhava as folias de Reis da zona rural, compondo com o palhaço (bastião) e a catirina, um animado trio de bufões que tramavam os diálogos e recitativos com o anfitrião que recebia o grupo. Como tal foi conhecido desde a região das Vertentes ao sul mineiro e daí na área serrana limítrofe do Rio e São Paulo.

04- Por fim nos contos populares, Pai João é um nome tradicional e indefinido para designar qualquer africano ou seu descendente, idoso via de regra, envolvido na narrativa. As estórias de escravos ou forros “Pai Joões” cheios de sabedoria, força religiosa, calma, malícia, bondade, humor, tudo amalgamado num único personagem são tradicionais e difundidas no país, formando mesmo um ciclo temático dentro da literatura oral: 
“Acorda Pai João, 
levanta Mãe Maria; 
pra tomá café, 
que já raiou o dia!” 
(Catupé,Lavras, 2004.
Canto de congado na chegada ao local onde se serve o desjejum.) 

Um exemplar de Pai João tematizando um conto popular colhi em 1997 do saudoso José Cândido de Salles ("Zé Cristino Boiadeiro"), morador de Santa Cruz de Minas, mas natural da zona rural de Antônio Carlos. Nesta estória de delicioso sabor popular Pai João se posta como adivinho e por pouco se livra de uma terrível encrenca. Ei-lo:

Cachimbo de escravo. Caquende (São João del-Rei/MG). (**)

Cachimbos de escravos. Três Praias (São João del-Rei/MG). (**)

Pai João vivia com a Mãe Maria e juntos tinham muitos filhos pequenos. Foi um tempo que ele ficava só encabulado num canto, pensativo, não agia. Trabalhava nada. Parece que tinha desanimado de lutar pela vida. Ela, cheia de preocupações, alertava o tempo todo:

_ Pai João, Pai João... vai caçar modo de trabalhar pra sustentar nossos filhos que os mantimentos tão acabando e agente passa falta!

Foi um dia que Pai João respondeu:

_ Vocês pensam que eu tô atoa? Tô não. Estou trabalhando muito aqui, óh! (apontando para a cabeça). Tô botando a cachola pra trabalhar que Pai João agora vai fazer adivinhação.
_ O quê?! Adivinhar? Você... Pai João, Pai João... cuidado! Que essa história de adivinhação vai dar em merda de cavalo preto!
_ Pai João vai adivinhar sim, você vai ver. Dai vou ganhar dinheiro.
_ Pai João, Pai João... a porca quando não tem o rabo comprido é rabicha! 

Com aquelas curiosas expressões Mãe Maria sabiamente alertava que adivinhar ele não tinha capacidade e poderia colocá-lo em encrencas. Não ia dar certo. Acabaria mal.

Mas não lhe deu ouvidos. Perto dali era um pouso movimentado de tropas que levavam a produção dos campos para a corte. Pai João começou a agir. Ficou o dia todo vendo a movimentação e se achegou aos tropeiros, ganhou confiança. De ouvidos atentos ouviu eles conversarem que tinham de entregar aquele grande carregamento urgente no dia seguinte, sob pena de severo castigo e prejuízo, fizesse chuva ou sol. Esperou eles dormirem e pôs seu plano em ação.

Correu em casa buscou um cincerro[1] e tirando no mato um pedaço de cipó, com ele amarrou-o ao pescoço da madrinha[2] e saiu juntando os animais cargueiros do pasto vizinho ao pouso para bem longe. Depois se recolheu.

Com a barra do dia apontando, logo um tropeiro deu o alerta que os animais tinham sumido. A agitação foi grande e não faltaram comentários sobre os castigos que o rei lhes daria pelo atraso da entrega.

Pai João já estava por ali.  Ficou esperando a hora certa até que soltou a sugestão, que era capaz de adivinhar onde a tropa estava. Os tropeiros se assanharam. Mas ele se fez de difícil e os homens lhe ofereceram recompensas: uma boa porção de cada gênero que eles iam carregando. 

Pai João falou assim:

_ Vocês lá vão levando uns rolos de fumo, né? Dá um pedaço pra nêgo véio pitá [3]...

Calmamente, picou o fumo, esmigalhou na palma da mão, carregou o fornilho do cachimbinho feito de toco de raiz de araçá do campo[4], fez que estava concentrando... Os tropeiros desesperados todos olhando para ele.

_ Vocês põe sentido no rumo que a fumaça vai pender. [5]

E de propósito baforou no rumo que tinha escondido os animais, na reta de uma grota erma, para adiante de um espigão.

Juntaram todos para lá. Pai João pois condição:

_ Nêgo véio tá cansado, não aguenta andar longe. Precisa de montaria.
_ Mas Pai João, todas sumiram...
_ Sozinho vocês não acham.

Foram agoniados pela redondeza e alugaram um animal para ele montar.

Saíram por ali fora, rompendo o saivá[6]. Depois de muito andar, eles já iam desistindo, quando Pai João, ao sopé do morro detrás do qual tinha soltado a tropa, falou:

_ Chegou.
_ Mas não vemos nada, Pai João.
_ Mas Pai João vê. Sobe no morro e olha pro lado de lá que vocês acha.

E lá estavam. Ficaram alegres, elogiaram Pai João, deram parabéns. De volta, como prometido deram-lhe de tudo um bom tanto e foram embora de viagem. Ele chegou em casa com toda aquela comida e abasteceu a despensa para muito tempo, falando que foi através de seu serviço de adivinhação. Mãe Maria ficou satisfeita com o suprimento mas não deixou de alertar de novo:

_ Pai João, Pai João... essas adivinhação ainda vai dar em merda de cavalo preto! A porca quando não tem o rabo comprido é rabicha!

O caso é que a fama dele de adivinho esparramou. E um dia, no castelo, três garçons roubaram um tesouro. O rei e a rainha muito apegados à sua fortuna desconfiaram de Deus e o mundo[7], de menos dos três que tinham muita confiança. Começaram um grande interrogatório e até judiaram de estrangeiros que passavam por ali, fazendo torturas que visavam a confissão.

Foi aí que alguém se lembrou das habilidades do africano. Ele seria capaz de adivinhar onde estava a riqueza roubada. O rei mandou um criado lhe chamar sob pena de morte.

_ Eu bem que te avisei Pai João... (disse Mãe Maria).

Diante das majestades saiu essa ordem da boca real:

_ Você tem três dias para me dizer onde está o tesouro. Se adivinhar te dou uma parte dele e você fica rico pro resto da vida; se não, vai pra forca.

Prendeu o adivinho num porão isolado de tudo e de todos, para não interferir na sua concentração e mandou os garçons levarem para ele comida e água à vontade e com fartura. No fim do primeiro dia, depois da janta, o garçom foi levando um bule com café quente e ao entregar, Pai João exclamou:

_ É... já foi um, só faltam dois!

Se referia aos dias do prazo para morrer pois não sabia adivinhar coisa nenhuma. Mas o garçom entendeu que ele já tinha adivinhado o furto: o um seria ele próprio, ou seja teria adivinhado um dos ladrões. Ficou com muito medo e contou para os outros, pois achava que Pai João tinha mesmo esse poder.

No segundo dia foi o mesmo processo. Na hora do café antes de dormir ele...

_ É... já foram dois, só falta um!

Estava com medo pois faltava um dia para sua execução. Os garçons com mais medo ainda se juntaram e chegaram à conclusão, que, se ele já tinha descoberto dois facilmente, descobriria o terceiro e resolveram se confessar a Pai João. Foram os três ao porão:

_ fomos nós Pai João que roubamos o tesouro mas pedimos sua ajuda senão o rei mata agente na hora. Óh, temos umas economias aqui que agente tem juntado do nosso trabalho de garçom. É tudo seu se não contar que foi agente.
_ Mas e o tesouro, onde está? Retrucou Pai João.
_ Agente escondeu mas vamos aproveitar a madrugada para por no lugar de novo. Temos liberdade e confiança para entrar em qualquer lugar.
_ Então tá certo.

Assim foi feito. Pai João, vencido o prazo e já tranquilo, foi levado à presença do trono.

_ Seu prazo venceu, disse o Rei. Onde está meu tesouro?
_ Uai, tá no lugar seu Rei.
_ Está brincado comigo?
_ Não senhor. Essa é a adivinhação de Pai João. O tesouro voltou pro lugar...

Saiu às pressas para conferir e voltou todo alegre, deu os parabéns a ele, elogiou. Mas como gostou das habilidades do adivinho, lhe impôs um novo desafio, agora por pura diversão. Cochichou no ouvido de um servo para soltar suas montarias no pasto e reservar no piquete um animal predileto, o que mais gostava, um cavalo de lustrosa pelagem preta.

_ Pai João: tenho muitos cavalos. Soltei tudo no pasto, só reservei um preso, meu preferido. Que cor que ele é? Se adivinhar aumento sua riqueza, senão você não volta mais pra sua casa.

Ele baixou a cabeça, entristeceu o semblante, se viu em apuros. Como não tinha saída, lembrou de sua esposa:

_ É... bem me disse Mãe Maria que daria em merda de cavalo preto...
_ Isso mesmo Pai João! Parabéns!!! O cavalo é preto.

A corte toda o aplaudiu. A rainha, muito encrenqueira, para não ficar para trás, chamou também sua ama e fez o mesmo jogo, agora prendendo uma leitoa nabuca[8] e propôs o mesmo a Pai João: aumentar a recompensa ou a prisão.

Caiu ele noutra agonia e sem ter saída ...

_ É... bem me disse Mãe Maria que a porca quando não tem o rabo comprido é rabicha...
_ Isso mesmo Pai João! Adivinhou! Ela não tem rabo, é cotó.

E assim, aclamado, aplaudido, respeitado, Pai João voltou cheio de muita riqueza e quando Mãe Maria perguntou o que ia fazer com tanto dinheiro, respondeu:

_ Pai João vai formar os filhos para advogado para defender Pai João ...

 E nunca mais mexeu com adivinhação.


Pai João em argila. 09/10/2016.
São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG)

Pai João em madeira. 09/10/2016.
São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei/MG) 

Notas e Créditos 

* Um fato digno de nota observamos no distrito de São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei) onde algumas pessoas a rigor católicas, conservam em suas casas, em geral na estante da sala entre objetos comuns, uma imagem artesanal de negro velho típico da cultura popular a que chamam indistintamente de "pai joão". Não é um gongá. A aparência é de um simples bibelô. Dizem: "é bom ter um pai joão em casa. Espanta os males..."


** Obs.: os cachimbos destas duas fotos foram encontrados em cascalheiras de antigas lavras de ouro por Luis Antônio Sacramento Miranda. São peças artesanais em barro, preservando apenas o fornilho (falta o pito). Mesmo que não se possa historicamente provar que pertenceram a escravos, na cultura popular, cachimbos deste tipo quando porventura são vistos são imediatamente rotulados de "cachimbo de escravo". 

*** Texto e desenhos de cachimbos: Ulisses Passarelli  

**** Fotografias: Iago C.S. Passarelli (as fotografias foram acrescidas após a edição desta postagem). 



[1] - Cincerro: sineta metálica, em geral de bronze, que se amarra no pescoço dos animais para facilitar a localização no pastoreio e para guiar outros animais como o guia do rebanho.
[2] - Madrinha: a guia do rebanho, quase sempre uma égua muito mansa que os outros animais sempre acompanham a direção.
[3] - Pitar: fumar.
[4] - Araçá: Psidium, arbusto da família das mirtáceas. A crença popular atribui à sua raiz misteriosos poderes sobrenaturais que afastam males, daí ser usado para confecção de cachimbos artesanais. Um verso de congado alude a essa madeira: “Casca de buta, / raiz de araçá, / sai do caminho / que eu quero passá!” (Capitão Luís Santana, Bairro São Dimas, São João del-Rei / MG, 1996)
[5] - Prática divinatória tradicional: a fumaça do cigarro, cachimbo, charuto ou fogueira ritual durante a benzeção ou cerimônia vira-se no ar apontando a direção do que se procura e motivou o rito. No norte mineiro, vale do São Francisco, corre que se a fumaça da fogueira de São João direcionar-se rio abaixo indica ano com chuvas regulares, se for rio acima (região da nascente ou cabeceira), muita chuva, se subir verticalmente, ano seco.
[6] - Saivá: matagal, terreno inculto, pasto sujo de arvoredos e espinhos, densamente vegetado, de passagem difícil. O mesmo que sarandi e restinga (neste sentido exclusivo. Não confundir com a vegetação típica de restinga, que é litorânea).
[7] - “De Deus e o mundo” – expressão popular de amplitude; todos, qualquer pessoa.
[8] - Nabuca – sem cauda ou de cauda excepcionalmente curta. O mesmo que cotó, sura, suruca ou rabicha.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Está chegando a festa de São Sebastião

Terão começo amanhã as novenas do glorioso Martyr S. Sebastião cujas festividades se realisarão com toda pompa no dia 20 do corrente”, anunciava a um século o jornal são-joanense O Zuavo.

Ainda hoje se realizam na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar estes festejos. É uma festa muito tradicional com novena, celebrações e procissão no dia maior, quando a folia de São Sebastião do mestre "João Matias" (João Batista do Nascimento), do Bairro Guarda-mor, comparece, desde alguns anos, cantando nos intervalos da banda. Sobre a antiguidade desta comemoração na cidade, na fonte bibliográfica da própria catedral consta que vem desde 1719, por então determinação do Senado da Câmara. A imagem é ainda mais antiga, pois foi retirada da capelinha incendiada durante a Guerra dos Emboabas (1707-1709). As músicas tocadas pela bicentenária Orquestra Lira Sanjoanense no evento revelam a capacidade extraordinária de nossos compositores sacros.

Na Comunidade São Sebastião e São Benedito, na Avenida Santos Dumont, em Matosinhos, é festejado conjuntamente, mas em outra época, abril, em meio a dito um forte movimento de inculturação em prol do fim do racismo e discriminação, graças aos esforços locais do grupo "Quilombo São Benedito”, mantido pela comunidade negra local, que também mantém um grupo de congado (catupé). Na festa vão no dia maior, congados e folias, que participam da procissão.


Bandeireira com a guia do Santo Mártir Guerreiro, 
na dianteira folia do Bairro Guarda-mor, São João del-Rei. Anos 1990. 

É o padroeiro de São Sebastião da Vitória, distrito de São João del-Rei, onde a parte folclórica conta com encontro de folias. Inicialmente só participavam as duas locais e a do povoado do Tijuco, meia légua dali rumo oeste, ainda no mesmo município. A partir de 2007 passam a ser convidados grupos de outras localidades.

Cartaz da Festa de São Sebastião, 43 x 30 cm, papel couché, policromado.
São Sebastião da Vitória (São João del-Rei/MG), 2014.

Em outros povoados e distritos é também festejado no município de São João del-Rei, nesta ou noutras épocas.

Possui grande festa em Santa Cruz de Minas, donde é padroeiro, com importante novenário e quermesse, com muita atividade religiosa. Todo ano folias de variados bairros de São João del-Rei vão visitar essa matriz e eventualmente ingressam na procissão. Em 2005 vieram do Bairro das Fábricas, do Bom Pastor e da cidade de Coronel Xavier Chaves. A folia local está desativada desde 2003. 

São Sebastião no andor, com o tradicional ramo de oliveira
 em sua festa em Conceição da Barra de Minas, jan.1998.  

Suas festividades são também animadas e queridas em Conceição da Barra de Minas, onde a folia do sr. "Vicente Cristino" garante a alegria e musicalidade, sem faltarem os bastiões.

Bastião ou palhaço da folia de Conceição da Barra de Minas revela em sua figura algumas tradições regionais acerca deste personagem: roupa vermelha, simples, de pouco ou nenhum babado, máscara de tela e o carregar ou dançar com a bandeira, cena inimaginável noutras paragens. Por aqui o palhaço não tem esta interdição e é o guardião da bandeira. Janeiro de 1998. 

Enfim um santo muito querido, festejado na zona urbana e rural, advogado contra a fome, a peste e a guerra, guardião dos rebanhos, protetor da fartura dos campos, também lembrado com carinho e respeito nos terreiros de matriz religiosa africana, em sincretismo com o orixá Oxóssi, Senhor das Matas, chefe das falanges de caboclos, os espíritos de antigos indígenas.

Referências Bibliográficas

Piedosas e solenes tradições de nossa terra. São João del-Rei, Paróquia da catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, v.2, 1997.

Referência Hemerográficas

O Zuavo, São João del-Rei, n.19, 10/01/1915

* Texto e fotos: Ulisses Passarelli

* Para saber mais a respeito leia neste blog:
Santo mártir está na terra 
Palhaços de Folias de Reis: ambiguidade e enigma - parte 1
Palhaços de Folias de Reis: ambiguidade e enigma - parte 2

* Leia também no blog Tencões e Terentenas:
http://diretodesaojoaodelrei.blogspot.com.br/2014/01/sao-sebastiao-guerreiro-e-protetor-de.html