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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O Bloco do Amor e outras memórias da Rua Antônio Rocha

A oitenta e dois anos, por um tempo desses, de prévias do carnaval, moradores do casario eclético da Rua Antônio Rocha, no centro de São João del-Rei, cuidavam dos preparativos do Bloco do Amor, que dela saía para alegrar o momo são-joanense. Registrou um antigo jornal da cidade: 

"Na rua Antonio Rocha, que sempre foi uma rua de foliões, acaba de ser formado mais um bloco, com pretensões a gozar direito o carnaval.
O bloco do amor vae exhibir um lindo carro, fechando o seu enredo: os genios da floresta. 
Os organizadores são os seguintes "endiabrados": José Nogueira, Weimar Lopes, Wilson Lopes, Jair Gomes, Gilson Regal, Osnir Lopes, Lourival Nogueira, Adalmir Gomes e José Marques." 

No mesmo ano saía do Morro da Forca o "Rancho Lyrio do Amor", informa a mesma edição d'A Tribuna (n.1106, 31/01/1932), bem como a subsequente. No passado o amor era mesmo um tema inspirador. Mas curiosamente num muro da rua em foco, uma pichação hodierna prega "onde não puder amar não te demores". Quanto às agremiações supra, desapareceram a décadas. 

A Rua Antônio Rocha surgiu no fim do século XIX com a instalação do complexo ferroviário em 1881, ao qual é fronteiriça. A chegada da Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM) foi o maior marco da história são-joanense nos oitocentos. Foi socialmente mais impactante que a própria elevação da vila à categoria de cidade, em 1838. Representou o limiar de duas eras. A partir dela houve um imenso impulso social, cultural e econômico que contribuiu muito para o crescimento e desenvolvimento da cidade. 

Antes da chegada da ferrovia o caminho do Centro rumo a Matosinhos se fazia pelo Matola (Rua Padre Sacramento), a meia-encosta do morro imediatamente ao sul da estação férrea. Este era o caminho antigo, verdadeiramente um trecho urbanizado do caminho geral do sertão - passagem de bandeirantes - pois a parte baixa era brejosa, sujeita a alagamentos. Com a vinda da EFOM o vasto serviço de nivelamento para instalação do complexo criou um novo espaço urbano, do qual a Antônio Rocha é a principal via. 

A uns cinco anos, numa obra que estava acontecendo numa das casas daquela rua, acompanhei um desaterro na vertical que evidenciou um arrimo de pedras imediatamente a partir do nível da rua, demostrativo do aterro necessário à abertura da via. O solo, a nível da rua de trás, é coberto por terra preta riquíssima em matéria orgânica, até uns 50 a 60 cm de fundura, quando surge outro tanto ou pouco mais de areia e cascalho, após o qual brota água em abundância, por se atingir o lençol aquífero contíguo ao Córrego do Lenheiro. Fica claro que o tipo de solo é uma evidência dos depósitos de aluvião trazidos pelas enchentes anuais. No mais, uma casa vizinha fica elevada sobre porão abaixo do nível da rua, também sustentado pelo mesmo arrimo de pedras, sinal do trabalho planejado de construção da rua. 

A ferrovia é o seu marco indelével, a começar do próprio nome, que evoca o português Antônio Francisco da Rocha, "um dos maiores acionistas e operosos diretores da Estrada de Ferro Oeste de Minas", segundo Guimarães & Vieira. É uma grata satisfação saber que esta rua preserva o nome original. Na Praça dos Ferroviários, à entrada da rua, um busto desta personalidade traz no pedestal uma placa com os seguintes dizeres: "Homenagem dos ferroviários da Oeste ao precursor da Rede Mineira de Viação 1881 - 1931".

Busto de Antônio Rocha na Praça dos Ferroviários no início da rua em questão.
O ir e vir dos trens, a passagem de viajantes e trabalhadores da ferrovia, o barulho do maquinário da oficina, a sirene que marcava o horário dos turnos dos empregados... impregnaram toda aquela via e nunca se separarão de sua memória. A rua era entrecortada pelo "Trem do Sertão", que saía  por um velho portão corrediço de réguas pretas para um pontilhão de ferro, ladeado por passarela de tábuas para os pedestres, bem onde hoje se situa a Ponte Padre Tortoriello. Na travessia víamos de antanho o sinaleiro, um ferroviário que cuidava de parar o modesto trânsito de carros para o trem passar, tal como ainda acontece na entrada da Caieira. O sinaleiro usava uma pequena bandeira vermelha para a tarefa durante o dia e uma lanterna para a noite, que tinha uma vela acesa dentro, clareando na cor vermelha de uma lado, verde de outro, que girava para indicar o trânsito. A máquina passava fumegando num apito penetrante, à noite com o grande farol aceso, um atrativo a mais. Além dos carros de passageiros, vinham muitos vagões de carga, pois São João era um grande entreposto. Por vezes composições pesadas chegavam com duas locomotivas atreladas, trafegando sincronizadas, bielas juntinhas no trabalho do vapor. A tração dupla era o maior atrativo para a molecada de meu tempo. 

Os guris sonhavam em roubar o trolley movido a varejões e fugir com ele até Chagas Dória, só para dar um passeio. Mas nunca tive essa coragem com os colegas, embora tenha compartilhado o inocente sonho. Por vezes, algum menino mais desinibido pedia carona no "bondinho" (auto de linha), pedido ora cedido ora negado. 
Placa indicativa do nome da rua, afixada na parede externa de uma casa.

O calçamento veio nos anos sessenta, em paralelepípedos que o sol pratea ao poente. Antes era areão e terra. Nele, até fins da década de 1970, os rapazes jogavam bola em plena Antônio Rocha, ali por seu trecho final, pois raramente vinha um carro. Lá quando surgia um veículo, era só beirar um passeio e depois prosseguir. O gol dessa pelada de fim de tarde era marcado por chinelos. Quando o movimento aumentou passaram para um pequeno campo onde hoje está o cruzeiro que ladeia a Gruta do Divino, ao pé do pontilhão supra-citado. 

Então era ainda comum a cena de faiscadores tentando a sorte nas areias do barranco do Lenheiro, de bateia à mão, em graciosos movimentos circunferenciais, até escorrer a última areiazinha, finíssima, ponteada do amarelo áureo, reluzente ao sol, fazendo brilhar o olho do garimpeiro teimoso. Neste ínterim andava beira linha uma lenheira, com um imenso feixe de lenha amarrado por cipós, equilibrado no alto da cabeça, protegida por um lenço. Passava silenciosa, com andar lento, a pele crestada pelo sol ... De onde vinha? Para onde ia com o pesado fardo? Fazer almoço pro Zé. Assar biscoito pro Chiquinho. Decerto! 

As crianças gostavam de passar peneira de lanço nas ramadas aquáticas do córrego e nelas nos deliciávamos colhendo barrigudinhos com pintas coloridas, delicados peixinhos poecilídeos, metidos no terrível cativeiro de um vidro vazio de palmitos.  De noite haveria de fugir um pouco para catar vaga-lume na caixinha de fósforos vazia. Se o sol estivesse muito quente, subia-se o Matola para banho na Lagoinha, uma reserva no morro! Admirem! Suas águas se avolumavam com as chuvas. Secou por completo, aterrada, soterrada, desterrada. Se não isto, banhava-se na bica, uma água límpida e fria que descia da Bela Vista e caía impetuosa num lajedo de pedra logo abaixo do pontilhão supra-citado, do lado da Rua Cristóvão Colombo, antes de sua ponte.  Ali era ponto de lavadeiras que chegavam e saíam com trouxas de roupas equilibradas na cabeça. Brincar de jogar finco, soltar pipa, rodar pião, brincar de roda, fazer casinha, jogar bolinha de gude na bujaca, no zapi ou no triângulo, rodar aro, jogar pedra de bodoque, brincar de pique, ou com carrinhos rudes, pequenos caminhões que algum artesão fazia em madeira, bater uma pelada, ou a queimada, eram nossas diversões. 

Por essa época ouvia estórias de arrepiar. Tarde não podia brincar no pontilhão que tanto gostava, porque era guarnecido por uma mulher muito branca, muito magra, muito feia, muito má... esguia, comprida como uma vara, maltrapilha... a Desgraça Pelada. Se a gente ousasse pronunciar esse nome ganhava um tapinha na boca, porque era pecado. Tal nome ofendia a Deus. Na quaresma da Antônio Rocha descia o Cavaleiro Misterioso a galope desenfreado desde a estação rumo a Matosinhos, barulho de casco crescendo de volume, arrancando chispas nas pedras do calçamento com o rompão da ferradura. E vinha, envinha... passava na frente do incauto, mas não era visto. Invisível, arrepiante. Era uma alma penada! Tinha também uma matilha infernal, cachorrada que descia a rua em algazarra dos diabos, gritando, latindo em briga feroz; cachorrão e cachorrinho, que se supunha pela voz, grossa e fina, porque tal como o cavaleiro, passava levantando poeira, mas não era visto. Velhos assombros, mistérios d'outrora que a modernidade baniu mas a lembrança teima em conservar. 

Na rua dos fundos, a Antônio Josino Andrade Reis, que sempre chamamos de "Beira da Praia" (alusão muito nossa ao Córrego do Lenheiro), para onde davam a maioria dos quintais, tinha a Cobra Grande. Muita gente idônea daquelas beiradas a viu, subindo e descendo o Lenheiro ainda sem urbanização do canal, matagal nas margens, moitas, árvores, pedras, taquari, taboa. Ora no mato, ora na água. O povo tinha medo. Diziam-na imensa, feroz, com tais atributos que os supunha d'outro mundo. Certo dia, junto com um tio, fomos tirar bambu para fazer pipa, numa moita grande que tinha atrás da Sede Ferroviária (de 1948), onde funciona o AA (Alcoólicos Anônimos). Vimos apavorados um enorme mussurana, imensa serpente preta com laivos arroxeados, de uma beleza que impõe medo e admiração, enrolada, grossa, medonha. Fugimos. Seria a famosa Cobra Grande? Alguma enchente a levou para sempre.  

Essa beira da praia era de fato um grande quintal comum. Os moradores tinham ali varais de secar roupa. Na relva do caminho estendiam peças do vestuário para quarar ao sol. Galinhas eram criadas soltas e ao fim da tarde entravam sozinhas para seus galinheiros, cujo acesso se dava por uns buracos de abertura quadrada, deixados de propósito nos muros dos fundos. Por esta rua, Antônio Josino, paralela à Antônio Rocha e em verdade sua extensão comunitária, passavam boiadeiros tangendo gado aos gritos, "ô-ah!", "boi!". Ouvi falar de uma cena inusitada, de um boi de chifraria aberta, bicho carreiro, agitado com ambiente urbano, que ao passar embaraçou o chifre numa peça íntima em um desses varais. Saiu com ele pendurado e a dona correndo atrás, gritando para o tangedor: "péra aí moço! Meu sutião!" Por aí passavam velhas bicicletas pasteleiras e carroças no caminho de terra batida, urbanizado na primeira metade dos anos noventa. 

Cruzeiro e Gruta do Divino, aspecto da Rua Antônio Rocha
e a Rua Antônio Josino Andrade Reis pouco antes da urbanização. 

A festa junina era animadíssima no "Arraiá do Pito Aceso". Não faltavam os arcos de bambu, os cordões de bandeirinhas de papel de seda, a fogueira, busca-pés, uma barraca de improviso onde se achava canjica, quentão, broa de coalhada, pipoca. Vinha sanfoneiro, pandeirista, violonista, caixeiro. Lembro bem de seu desafio calangueado, no "calango-lango-tango, no calango da lacraia!" Moradores da rua viravam noivo, noiva, padre, dançantes de quadrilha e no balancê se confraternizavam. 

A Sede Ferroviária era lugar de queridos carnavais de salão, onde fantasiados de todo tipo se entregavam às clássicas e imortais marchinhas. O movimento de foliões era muito grande até a década de 1960. 

Em 1999 foi construída a Gruta do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário, espaço comunitário que desde então tem congregado os católicos do lugar e imediações na prática das orações de terços e novenas (Divino, Natal), além de uma missa campal por mês, a cargo da Paróquia de São Judas Tadeu. Neste espaço já foi realizada muita festa popular: as juninas, com fogueira, pau de sebo e quadrilha, a queima de judas, o terço da Santa Cruz, a festa de Santos Reis (com folia e pastorinhas), a do rosário (com congados) e o Divino, trazendo muitos grupos folclóricos e banda de música. Lamentavelmente estas festas se foram neste espaço.

A Rua Antônio Rocha é hoje bastante movimentada, como principal via de tráfego que vem do centro da cidade rumo aos bairros Fábricas, Caieira, Colônia e Matosinhos. As poucos vão surgindo pontos comerciais, transformados a partir de residências. Mas ainda é uma rua tipicamente residencial. 

Referências bibliográficas

GUIMARÃES, Betânia Maria Monteiro, VIEIRA, Luana Cristina. Bustos, estátuas, monumentos e chafarizes de São João del-Rei. 2.ed. São João del-Rei: UFSJ, 2013. 76p.il. 

Notas e Créditos

* Texto e fotos: Ulisses Passarelli

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