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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 10 de agosto de 2014

Os lázaros

Breve história dos leprosos em São João del-Rei

Desde remota antiguidade, o homem teme terrivelmente a doença causada pelo bacilo de Hansen, a famigerada lepra, hoje preferencialmente chamada hanseníase, que por séculos restringiu e mesmo isolou seus doentes do convívio social, em diferentes culturas e épocas. A actinobactéria causadora é Mycobacterium leprae, hoje combatida com eficácia graças a tratamentos poliquimioterápicos, sendo uma doença curável. Os processos educativos atuais colaboram com a melhoria da conscientização, pelo fim da discriminação e almejando um tratamento humanitário. A conscientização passa também pelas orientações do auto-exame, capazes de identificar fases iniciais da doença, o que facilita a cura através de um tratamento precoce, que deve ser sempre incentivado. 

No passado, porém, os pacientes com hanseníase sofreram o opróbrio de uma sociedade discriminadora, fomentada pela própria religião que os considerava impuros (Lev. 13: 2-3). O complexo ritual judaico de purificação está descrito no capítulo 14 do Levítico. Até manchas nas paredes, apenas mofo, era considerado sinal de impureza leprosa e podia resultar na derrubada da moradia e descarte dos materiais de obra. O impuro tinha várias interdições religiosas e a lepra era encarada como praga ou castigo divino. Mas Cristo os curava piedosamente (Lc. 16: 11-19): "Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!" (...) "Levanta-te, e vai, tua fé te salvou."

Consta que na idade média quando andavam pelas ruas tinham que portar uma sineta, cujo som alertava de sua chegada, pelo medo extremo de contaminação que havia.

O personagem bíblico Lázaro é o patrono dos afetados pela hanseníase. Sua história narrada pela bíblia é um extraordinário caso de sofrimento humano, pois que coberto de lesões corpóreas, na agonia da dor e prurido, os cães lambiam-lhe as feridas (Lc.16: 19-31). Lázaro recebeu de Cristo a extraordinária recompensa da ressurreição, num dos episódios mais marcantes da passagem terrena de Jesus (Jo. 11: 1-44). Há quem lhe negue a existência, colocando-o na categoria de mera parábola, ou ainda, dizem os exegetas, que o tal Lázaro ressuscitado não é o mesmo chagado, mas ao povo isto nada importa e não passa de falta de fé: Lázaro é um só, santo exemplar, modelo de humildade e resignação. 

São Lázaro. Capela de Nossa Senhora das Vitórias, 2013.
São Sebastião da Vitória (São João del-Rei/MG).

Ora, bem mais tarde, sobrevém outra vida em santidade que se soma ao tema das doenças dermatológicas: São Roque (séc.XIV), o santo francês de Montpellier, que cuidava dos doentes da peste negra, que assolava a Europa, acabou contaminado pela mesma. Sua imagem também mostra ferida exposta com o cão a lamber.

Ambos passaram para o devocionário popular como protetores contra doenças da pele (a rigor não apenas a lepra). No mais, ao costume católico, se somou o sincretismo religioso afro-brasileiro, que identificou por similitude de atributos: São Lázaro ao respeitadíssimo orixá  Sr. Omulu, o velho, e a São Roque, a Obaluaiê, o jovem. São entidades ligadas às almas (alusão à passagem do Lázaro bíblico no mundo dos mortos e seu retorno pelo poder do Messias) e a ocorrência das lesões cutâneas, peste, lepra, "bexiga" (varíola), "ferida brava" (leishmaniose tegumentar), "fogo selvagem" (pênfigo foliáceo). O povo acredita que o santo/orixá pode livrar a pessoa desses males, ou por outro lado, ambiguamente, pode castigar gerando estes males, quando se lhes desrespeita. Automaticamente o cachorro é seu animal votivo e símbolo de sua proteção.

Nos terreiros, rituais próprios são dirigidos para prevenção e cura, entre pontos cantados, firmezas, oferendas e banho com "flor de Omulu" (pipoca), quando esta é esfregada no corpo do consulente (que permanece vestido) e depois despachada, promovendo descarrego dos males.

O povo procura as igrejas onde tem imagem dos santos citados para alcançar suas graças de cura, ou lhes oferece intenção de missas, ou deposita óbolos nas caixas de coleta como oferta pecuniária na intensão de conquistar as benesses dos santos. Em Santa Cruz de Minas nos anos noventa, colhi a informação de que quando alguém tem feridas nas pernas, deve pegar um pires ou prato e sair rua afora pedindo esmola pelo amor de Deus em nome de São Lázaro. O fruto da coleta deve ser entregue numa igreja e assistir a missa na intensão do santo que a cura logo vem. Raras são suas igrejas específicas. Em Passa Tempo há uma capela dedicada a São Lázaro.

Em São João del-Rei o saudoso "Chico Cumbuca", morador do Morro da Bela Vista, rei de congado e conceituado benzedor de feridas nas pernas, era devotíssimo de São Lázaro, a quem recorria nas benzeções. Conservava sua imagem num oratório ao ar livre, no jardim fronteiriço de sua morada, pois dizia que não era bom ter a imagem deste santo dentro de casa por causa do tipo de graças que operava.

Na cultura popular, a religiosidade simples do povo oferece aos santos a mesa dos cachorros (para São Lázaro) e o galo (para São Roque). A mesa é um velho rito citado no Brasil setentrional e parte do Nordeste, mas também foi conhecida em Minas Gerais, inclusive nos Campos das Vertentes. Consiste basicamente em estender no chão uma toalha de mesa, por pratos servidos de boa e farta comida e buscar cães para que comam. Os cachorros comem nos pratos e a mesa é ofertada ao santo como pagamento de promessa ou para pedir uma graça a São Lázaro. Foi conhecido nesta região (*). O galo de São Roque é referência ao costume rural de consagrar desde pintinho um galo a São Roque, que é criado isolado do contato com galinhas de maneira vitalícia, permanecendo virgem. O costume garante a saúde do restante da criação. O galo só é substituído por outro em caso de morte e não pode ser usado como alimento, vendido, trocado ou doado.

Pela relação da lepra com São Lázaro, o substantivo próprio adjetivou-se para designar os doentes de hanseníase: um lázaro, equivale a um leproso, numa enunciação piedosa, visando eufemismo; lazarento ao contrário é um xingamento pejorativo, revestido de escárnio; lazareto  é leprosário (Brasil) ou leprosaria (Portugal), centro de recolhimento e tratamento de leprosos, morféticos.

Em São João del-Rei os cuidados com os doentes de hanseníase vem de longa data e falar deles é falar dos excluídos.

Notícias jornalísticas de São João del-Rei sobre as vítimas de hanseníase.
Site da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida. 

ALVARENGA (2009) informa que os cuidados iniciais aos excluídos eram dados pela Irmandade de São Miguel e Almas, criada em 1716. Mais tarde esta missão foi transferida à Casa da Caridade, criada em 1783 pelo irmão Manuel de Jesus Fortes. Neste sentido, GAIO SOBRINHO (2010) transcreveu um documento de 1805, no qual os vereadores de São João del-Rei solicitam ao governador a criação de um hospital para se recolher leprosos:

"respeito à liberdade e licença com que vivem as pessoas lazarentas que, sem cautela nem temor de infeccionar aos mais, caminham impunemente pelas ruas, habitam, comem e bebem, sem reserva, nas casas dos particulares, entram de mistura nos templos, onde por acinte passam a lavar as chagas em Água Benta" (...) "Manoel de Jesus Fortes, que nesta vila tem estabelecido um hospital público para os pobres enfermos de outras moléstias, suplica e lembra a indispensável necessidade que há do estabelecimento de semelhante hospital". 

Esta instituição foi convertida em Santa Casa da Misericórdia em 1816 e de fato manteve um leprosário em terreno próprio, exatamente onde hoje se situa o Teatro Municipal. Uma deliberação da mesa administrativa da Irmandade da Misericórdia, determinou em 1817 a construção de um muro de pedras isolando o lazareto e impedindo a livre circulação dos doentes, "para evitar que eles possam ir comunicar-se e infestar os moradores da Vila". Quando morriam, eram sepultados no pequeno Cemitério da Misericórdia, criado em 1819 e desativado em 1897.

Falando sobre a Santa Casa de Misericórdia, Burton, em 1867, comentou com brevidade: "possui, também, anexos para insanos, leprosos e portadores de doenças contagiosas." (p.158)

É de se imaginar as dificuldades surgidas com o fim do serviço a estes pacientes. O lazareto da Santa Casa foi demolido em 1881. GAIO SOBRINHO (2001) informa que a partir do parecer de uma comissão de médicos reunida em março de 1897, definiu-se a região do Quicumbi (**), onde havia uma chácara, como propícia ao estabelecimento de um lazareto e um cemitério. Com este intuito, foi declarada de utilidade pública no ano seguinte, por força de uma lei municipal de 09 de fevereiro, segundo CINTRA (1982). (***)

No ano de 1927 foi inaugurado o Posto de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas, nos diz A Tribuna, de 22 de maio. Nas edições seguintes saíam notas jornalísticas esclarecendo a quantidade de pacientes atendidos, número de novos casos, referências a casos antigos, total de injeções aplicadas, cirurgias e outros procedimentos. O mesmo jornal em 1931 relata a criação de uma filial são-joanense da Sociedade Mineira de Proteção aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. No concorrido ato da inauguração discursaram e foram intensamente aplaudidos os doutores, Eloy Reis e Francisco Mourão Filho. A direção desta instituição ficou assim constituída: Presidente - Coronel José do Nascimento Teixeira; 1 º Vice-presidente - Padre José Maria Fernandes; 2º Vice-presidente - Comandante do 11º R.I.; 1º Secretário - Luís de Melo Alvarenga; 2º Secretário - Professor Antônio R. Avellar; Tesoureiro - Carlos Alberto Alves.

Desta data em diante escasseiam as notícias sobre os cuidados dispensados aos pacientes de hanseníase.

Meus pais me narraram certa feita uma marcante lembrança de infância, da década de 1950 em São João del-Rei, que vez por outra via-se pelas ruas leprosos a cavalo, marcados por curativos e bandagens, olhados por todos com ressalvas. Pediam ajuda sem desmontar do animal e a oferta lhes era dada meio à distância. Comentava-se do temor da doença pois um dos pedintes não teria nariz.

Notícias orais dão conta de ter existido um leprosário no Caquende, vilarejo no extremo sudoeste da zona rural de São João del-Rei. Recordo ainda dos tempos de criança, de ouvir as senhoras recomendando entre si não receber em casa ninguém do Caquende, não pegar na mão para cumprimentar e se desse algo de comer ou beber, descartar depois a vasilha, pois podiam trazer consigo a contaminação da temida doença, que naquela São João del-Rei dos anos setenta, parecia ainda atemorizar como se fora nos tempos bíblicos.


Cuidados com os leprosos eram noticiados nos jornais da cidade.


Notas e Créditos


* Obtive informações orais da realização da mesa dos cachorros ou mesa de São Lázaro em Jacuí (sudoeste de Minas) e nas Vertentes, em Santa Cruz de Minas e Santa Rita do Ibitipoca. É prática antiga, possivelmente desaparecida.

** Quicumbi: palavra incógnita, de origem africana, bantu, plausivelmente da língua quimbundo, formada pelo radical cumbi, traduzido por "sol". Aparece no Brasil ligado a outros prefixos formando palavras similares: cacumbi, cucumbi, ticumbi (e corruptelas: catumbi, cacumbinho, tiquimbi), todas nominando um folguedo popular, dança folclórica, espécie de congado, registrado em Pernambuco, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul em variações estilísticas. A significação exata não é conhecida. Relatos antigos informam que originalmente eram praticados na ocasião da circuncisão dos filhos da realeza africana escravizada no Brasil, daí, a palavra quicumbi e suas variantes, em conjunto, serem entendidas sob o significado de "puberdade", festa de um antigo ritual de passagem para a adolescência, com cantos e danças, mais tarde absorvida pelos ciclos festivos do rosário e carnaval, mais intensos e frequentes. Em São João del-Rei nunca encontrei referências de quicumbi como folguedo, embora não fosse impossível em sua origem. Foi sim, o nome de uma chácara do século XIX, que pertencera ao Major Joaquim de Castro e Sousa, falecido em 05/01/1888. Convertida em campo santo pelo poder público da cidade, ainda hoje o são-joanense chama "Cemitério do Quicumbi" ao Municipal, dando notável resistência ao africanismo. O Córrego do Quicumbi, que nasce na grota ao pé do morro aos fundos, está praticamente seco, engolido pela canalização do urbanismo.

*** O processo pode ter demorado um pouco, pois notícias jornalísticas do S.João del-Rey, revelam uma resolução municipal nº147, datada de 22/04/1899, que autoriza a construção do cemitério com portão de ferro. O orçamento era de 7 contos de réis.

**** Texto, fotografias e foto-montagens: Ulisses Passarelli


Referências bibliográficas

ALVARENGA, Luís de Melo. História da Santa Casa de Misericórdia de São João del-Rei (1783-1983). Belo Horizonte: Formato, 2009. 444.p.il.
BURTON, Richard Francis. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: 2001, Senado Federal.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p. 
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982. 2v.
GAIO SOBRINHO, Antônio. Visita à Colonial Cidade de São João del-Rei. São João del-Rei: Funrei, 2001. 128p.
GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ, 2010. 260p. p.204-206.

Referências hemerográficas

A Sentinella, n.2, 14/10/1934, São João del-Rei
A Tribuna, n.854, 22/05/1927, São João del-Rei
A Tribuna, n.1.091, 11/10/1931, São João del-Rei
S.João del-Rey, n.17, 13/05/1899, São João del-Rei

Referências na internet

Lepra - Wikipédia (acesso: 09/08/2014, 06:13 h)
Mycobatcterium leprae - Wikipédia (acesso: 09/08/2014, 06:13 h)
Acervo digital da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida

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