Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Causos sobre vacas

Nesta postagem expõe-se dois curiosos causos envolvendo vacas.

O primeiro é uma transcrição jornalística (*) de matéria publicada em São João del-Rei a 112 anos. Teria acontecido no distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno. A grafia foi atualizada. Narra o castigo divino que caiu sobre um sitiante que usurpou a vaca de outro e é explicitamente o reflexo do pensamento da cultura popular sobre a justiça divina. Estórias assim se repetem como exemplo de lição, e, como tal, assume finalidade quase catequética.

O segundo causo é anedótico e se passa com uma folia de reis rural que ruma à casa de um potentado político do sertão, um "coronel" como se dizia outrora, título não militar, de cunho honorífico, aplicado a ricos comerciantes e latifundiários, em geral poderosos e violentos, impondo seu domínio pela força de armas na mão de capangas. Ouvi-o aqui mesmo, nesta São João, terra de ricas tradições, num finzinho de tarde a dez anos, do saudoso folião "Tião Domingos" (**), enquanto esperávamos o restante da companheirada chegar para sairmos com a folia à rua. Bons e saudosos tempos!

Detalhe de uma pintura popular sobre um latão de leite de 50 litros.
São Miguel do Cajuru (São João del-Rei/MG).

1- "Deu-se há dias neste distrito um fato, que muito tem impressionado esta população. Eis o caso: um sitiante vizinho foi a casa de outro e lá, com extrema brutalidade, insultou-o muito, insultou a própria família do mesmo, contando com o gênio excessivamente pacifico do insultado. Tudo isto fez por causa de uma vaca que dizia ser sua e que afinal de contas não era. Ao retirar-se garboso, tocando a vaca que dizia ser sua, o fazendeiro insultado disse-lhe apenas estas palavras: "a vaca não é sua mas pode levá-la que Deus cobrará por mim." Em tal hora essas palavras foram ditas que os anjos disseram _ "amém". Dois dias depois disso, sem chuva alguma, céu claro e sem nuvem, estronda um corisco e cai uma faísca no meio do gado do sitiante, e dessa feita, morreram seis vacas, das melhores. O sitiante vai mudar o gado de pasto e outra rês cai num desbarrancado. Dias depois morrem mais duas vacas atoladas, quase em frente à casa do sitiante usurpador. A providência cobrando as injúrias lançadas à família do outro! E assim vai o bruto pagando, e com juros a vaca tirada. Este fato verdadeiro e real muito nos tem impressionado aqui."


2- Aí por esses ermos entre montanhas, foi a muito tempo, que uma folia de reis, daquelas simplórias, próprias das roças, estava em jornada por léguas, visitando sitiantes e fazendeiros, tendo à frente sua bandeira sagrada. A bandeira era muito humilde, feita de um pequeno pedaço de pano vermelho, já surrado pelo tempo, com alguns enfeites e o registro (estampa) dos Santos Reis. Vinha presa numa vareta de bambu, pela qual o bandeireiro a carregava respeitosamente. Iam de visita à casa de um "coronel", onde todo ano passavam com a folia e pousavam. Ele gostava demais e se sentia muito ofendido se sua casa não fosse visitada. Como era muito bravo e influente, ninguém ousava desagradá-lo, como manda-chuva do sertão que era. Deu-se, que o calor cruel e o cansaço da longa caminhada os fez prostrar sob uma frondosa árvore no meio de um pasto. Tinham almoçado de pouco e não teve jeito... amontoaram os instrumentos junto ao tronco e puseram a bandeira por cima para abençoar, como de costume. Deitaram na grama mesmo, se acomodando como deu. Cochilaram. Por ali pastavam umas reses e não é que, com o paradeiro dos folieiros, naquele mormaço, foram se aproximando e uma vaca mais afoita, atiçada pelo pano da bandeira balançando a ponta ao vento, meteu-lhe a boca e começou a comer a bandeira da folia. Quase no fim, ao puxá-la com os dentes, a vareta de segurar derrubou os instrumentos e foi aquela barulhada de pandeiro rolando, caixa tombando, cavaquinho estatelado na macega. Os folieiros acordaram assustados e um gritou: "a vaca  tá comendo a bandeira!" e correu para acudir, mas como só estava uma ponta de fora, ainda fez cabo de guerra com a vaca, mas ela levou a melhor e acabou engolindo tudo. Só sobrou o pauzinho de segurar, ou melhor, o bambu, com umas fitinhas desbotadas na ponta. Entreolhando-se decepcionados e preocupadíssimos, logo se puseram a discutir o que fazer, ante tão embaraçosa situação: "vamos embora para casa", diziam uns; "não, vamos ao coronel assim mesmo, que se faltar lá ele manda até capanga perseguir agente...", diziam outros. Não havendo consenso, ordenou o folião: "o jeito é ir na fazenda do coronel. Lá não pode faltar... Agente explica com jeitinho." Pois foram. Na chegada, o homem esperando, olhou espantado para o grupo, dando pela falta da bandeira, situação inimaginável para uma folia... O bandeireiro na dianteira, muito sem graça, cabeça baixa, segurando a vareta com fitas na mão. O mestre, com a viola em punho, sem saber como explicar em seus versos o acontecido, se saiu com este improviso: 

"Meu senhor dono da casa, 
não repara o que aconteceu: 
dai esmola pra vareta,
que a bandeira a vaca comeu..."


Notas e Créditos

* Fonte: O Combate, n.154, 01/03/1902, São João del-Rei. Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
** Informante: Sebastião Teodoro da Silva, 2004, São João del-Rei
*** Texto e fotografia (2013): Ulisses Passarelli 

domingo, 26 de outubro de 2014

O gato maldito: um conto do demônio logrado

Certo dia, um homem apareceu em casa com um gato e estava muito feliz por ter encontrado o bicho. Entregou-o à esposa e pediu que tratasse dele. Foi trabalhar. 

A mulher cuidava do felino e o gato sempre comia a fartar, mas todos os dias quando o marido chegava da labuta, o gato vinha ronronando, se esfregava na calça do dono e miava muito como se tivesse com fome. 

O homem começou a se chatear com a mulher, acusando-a de não alimentar o animal, pelo qual tinha tanta estima. Achava uma covardia deixar o bichano passar fome e ela se defendia dizendo que o tinha alimentado bastante. O marido não acreditava porque o comportamento do gato era de quem estava com muita fome. 

Assim a discórdia do casal aumentou dia a dia por causa do gato, a ponto do marido bater na mulher. 

Foi então, que, certo dia, o homem passando por baixo de uma ponte escura e deserta ouviu vozes debaixo da mesma. Foi espiar e admirou ao ver vários capetas em reunião, contando os seus feitos malfazejos daquele dia. E ouviu um dos diabos dizer: 

"_ ultimamente tomei a forma de um gato e causo brigas entre um casal, porque o homem, ao voltar do serviço, acha que a esposa não deu comida para mim."

O homem trabalhador voltou apavorado para casa e foi se preparar para o gato maldito. Empilhou lenha para fazer uma fogueira e arranjou um cordão bento de São Francisco. 

Quando o gato apareceu ele o pegou de repente e amarrou as patas com o cordão. Jogou o gato ao fogo dizendo firmemente à mulher que não interferisse que ele sabia o que estava fazendo. Foi então que se ouviu um forte estouro que marcou o desaparecimento do tentador. 

A partir de então o casal voltou a viver bem, com paz e união. 


Demônio. Parte de um painel pintado na parede direita da nave
da Igreja de Santo Antônio. Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno
(São João del-Rei/MG)

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 19/10/2014
*** Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1994
**** Obs.: este conto se enquadra na categoria das narrativas do "demônio logrado", quando as artimanhas malignas são superadas pela sagacidade humana. Conserva elementos folclóricos tradicionais, ou antes temas e fórmulas típicas: o gato como animal negativo (paralelo com sua preguiça e dissimulação, atributos do mal); satanás atentando um bom casamento para destruir a união; o cordão bento de São Francisco de Assis como amuleto capaz de amarrar e rebater o malefício; o fogo como elemento de catarse, purificação; a explosão como fórmula clássica de desaparecimento do demônio expulso. Em seu bojo, o conto transmite o ensinamento religioso de que a tentação vem muitas vezes sob aparências inocentes e chega sem avisar, sendo necessário, como ensinou o Divino Mestre, vigiar e orar. 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O Cirineu

Quando Cristo em todo seu padecimento carregava a cruz rumo ao Gólgota, já com forças físicas exauridas, foi ajudado por um tal Simão, o Cirineu, tomado do meio do povo por ordem dos romanos e obrigado a carregar a cruz de Cristo dali por diante. Era pai de Alexandre e Rufo, natural de uma colônia grega do norte africano, chamada Cirene, onde havia uma grande comunidade judaica. No momento, vinha do campo e qual não deve ter sido sua surpresa ao ser tomado para tal tarefa. 

Dizem as escrituras:

"Saindo, encontraram um homem de Cirene, chamado Simão, a quem obrigaram a levar a cruz de Jesus." (Mt 27, 32)

"Passava por ali certo homem de Cirene, chamado Simão, que vinha do campo, pai de Alexandre e Rufo, e obrigaram-no a que levasse a cruz." (Mc 15, 21)

"Enquanto o conduziram, agarraram um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz, para que a carregasse atrás de Jesus". (Lc 23, 26)

O Evangelho de São João não cita Simão Cirineu. Tomando por base a saída do pretório diz apenas: 

"Levaram então consigo Jesus. Ele próprio carregava a sua cruz para fora da cidade, em direção ao lugar chamado Calvário, em hebraico Gólgotha." (Jo 19, 17)

O apócrifo Evangelho de Nicodemos (ou Memórias de Nicodemos), em sua recensão B, cita expressamente o personagem em questão. Segundo Moraldi:

"Simão de Cirene, pai de Alexandre e de Rufo, foi requisitado para levar a cruz de Jesus ... "não porque eles tivessem compaixão de Jesus e quisessem aliviá-lo do peso dela, mas porque  _ como foi dito _ queriam matá-lo mais depressa." (sic, p.313)

A história de Simão de Cirene passou para a tradição cristã ganhando representação pictórica nas obras de arte, materializando-se em personagem nas peças teatrais sobre a vida de Jesus e figurando ainda nos filmes com esta temática. 

Bem menos explícito e com certa sutileza, o termo "cirineu" surge em São João del-Rei e certamente em outras velhas cidades eivadas de barroquismo, para designar dois tipos de peças de metal que ajudam a amparar pesados andores procissionais. 

Cirineu tornou-se então um objeto. O tipo mais conhecido é uma forquilha metálica presa a um pau torneado, que os membros das irmandades religiosas carregam à mão para apoiar os varais do andor no instante de descanso da marcha, durante uma procissão. O cirineu ajuda a sustentar o peso num breve momento de parada para um fôlego. Também é chamado “gancho”. Interessante registrar que o sinal para os carregadores voltarem a andar são uns batidos rápidos e curtos dados com o cirineu na madeira do varal do andor. Sinal sonoro este plenamente compreendido como aquele convencionado desde sempre para retomar a caminhada.


 
O cirineu ajuda a sustentar
o peso de um andor.
São João del-Rei/MG.

O segundo tipo de cirineu, que dizem ser o legítimo, é uma forquilha de ferro que se apóia na parte posterior do andor do Senhor Bom Jesus dos Passos para ajudar a sustentar a cruz, dando-lhe equilíbrio. Não vai na mão do carregador do andor mas unicamente é fixo na parte de trás da montagem. 

A seta indica o cirineu que ajuda a sustentar a cruz do Senhor dos Passos.
Rasoura dos Passos, Igreja de São Francisco de Assis, São João del-Rei/MG. 
O povo soube assim de forma criativa, senão mesmo singela, nominar um simples objeto de auxílio por analogia ao Simão que ajudou Cristo, ainda que obrigado. Tal como aquele, o cirineu de hoje passa despercebido no contexto da marcha religiosa. A imagem é o foco da atenção.

Referência Bibliográfica

Bíblia Sagrada. 6.ed. São Paulo: Ave Maria, 1965. 
MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Paulus, 1999. 393p.

Referência da Web

Simão de Cirene. Wikipédia. Acesso em 23/10/2014, 12:00h


* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 2014

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Rio das Mortes festeja o Rosário com toda tradição

Conforme foi anunciado por este blog, o distrito são-joanense de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, a duas léguas da cidade de São João del-Rei, experimentou sob o sol inclemente deste último fim de semana, mais uma vez, como o faz desde tempos primevos, uma emocionante festa congadeira em honra à Virgem Pura do Rosário.

Na Terra de Nhá Chica o povo devoto foi acordado em plena madrugada pela alvorada do congo, o grupo todo à rua, desde a meia-noite até as quatro da matina, sem uniforme, girando em marcha pelas vias, fazendo visitas e não obstante o horário impróprio, o povo que os entende, aceita, ama e apóia, prestigia e oferta comes e bebes de bom grado.

Então os dançantes se recolhem para um breve descanso e se juntam de novo para o almoço, no povoado vizinho do Largo da Cruz, sede do tradicional congo. Já agora estão sob o caprichoso fardamento, alvíssimo, de saiotes rosas, plissados, lenços ao pescoço, capacetes floridos à cabeça (de flores artesanais de papel crepom). O respeitado Capitão Pedro Noberto da Silva honrando a tradição familiar dos Cristóvão, puxa a guarda de volta à vila.

1 - O notável Capitão Pedro Noberto da Silva.

Beira o meio-dia. Cá da porta da sacristia um rojão rebenta no ar chamando a congada. Lá do Largo da Cruz foguetes respondem. É o sinal, a chamada. E de tanto em tanto repetem o sinal, cada vez mais perto, revelando a aproximação. Momento importante é a travessia do Rio das Mortes Pequeno: em cima da ponte o congado canta:

Fui passá na ponte
a ponte tremeu ...
debaixo da ponte,
tamborim gemeu!

É a entrada da vila. Doravante o povo os verá. E como vê! Em vasto acompanhamento rua afora, rumam para a igreja do padroeiro, Santo Antônio, onde assistem missa, descalços, em memória dos escravos. Antes de entrar no templo, uma visita ao mastro é de praxe, bem como ao portão do cemitério.

2- Congadeiros visitam cemitério. 

Ao término da concorrida celebração, cantam algumas peças junto ao altar e depois de saída, vem à sacristia, onde põem os calçados. De partida, um foguete anuncia o canto:

Vamos passear na rua!
Vamos passear na rua!

Daqui e dali umas visitas e volteios. No caminho pela praça lotada, entre parquinhos de diversões, ambulantes e barraquinhas de comes-e-bebes, os mouros vestidos de vermelho correm atrás dos incautos e da criançada que não cessa de provocá-los. Metem a espada de madeira por baixo das pernas de suas vítimas em gesto de quem as levanta do chão, chegando em surdina por detrás ou correndo desenfreados em perseguição. Ninguém xinga, machuca ou reclama. A tradição é velha, tem raiz. Todo mundo compartilha e se envolve com alegria.

3- Diferentes gerações se irmanam no congo: esperança de futuro. 

Chegando à casa onde o Reinado está recolhido, a coisa muda de figura. O congo puxa reinado rua afora:

Marinheiro do mar,
que brinca bem,
puxa fieira,
reinado en'vém!

Os mouros agora voltam sua atenção para os reis e rainhas, que tentam descoroar com a espada, mas são impedidos pelos cercadores, munidos de paus, que com eles esgrimam numa rezinga admirável. Basta o mouro tocar a ponta da espada na coroa que já se considera vencedor. Reminiscências ...

4- Rezinga de Mouros.  

Na porta da igreja o Reinado é entregue. Em duas carreiras de bancos sentam-se para a chamada. A grande seca de 2014 judia, escalda, arde em brasa mas ninguém arreda. A longa listagem segue enunciando nomes individualmente. Citado um nome real, o coroado se ergue do banco, ajoelha diante da igreja, onde, numa mesa posta adrede, forrada de toalha branca de renda e bordado, um balde de água benta e uma cestinha estão depositados. É aspergido e na sequência descoroado, a capa retirada. Recebe um cartucho de amêndoas, doa um envelope contendo espórtula à festa. Uma ajudante conta o dinheiro na hora, deposita-o no cestinho e anuncia em alta voz, batendo uma sineta: "viva o rei (o rainha) fulano... que doou cem reais!" Imediatamente a centenária Banda de Música Lira do Oriente, sentados seus músicos em bancos ao lado, sob a sombra de uma árvore, irrompe uma pequena peça chamada "Posse de Reis". O próximo coroado é chamado e assim por diante. Enquanto a chamada se processa o congado se dissipa para breve descanso e retorna na hora da Ave Maria para a procissão.

5- Caixeiro reverencia o Reinado.
O término da festa reserva momentos emocionantes com espetáculo de fogos e apresentações de virtuose dos caixeiros do congado. Reis e Rainhas são entregues de volta. 

A festividade de Nossa Senhora do Rosário e o grupo de congo deste distrito de São João del-Rei encontram-se muito bem preservados. O devoto se sintoniza ao rosário através da percussão congadeira. O ritmo ancestral ascende como uma prece rumo ao eterno. 

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotos: 1 e 3 - Iago C.S. Passarelli; 2 e 5 - Ulisses Passarelli; 4 - Cida Salles
*** Leia também:

sábado, 18 de outubro de 2014

Mascates

Mascate era o caixeiro viajante, o vendedor ambulante que passava pelas casas ofertando produtos, principalmente nas fazendas e sítios, vendendo panos e objetos diversos, utensílios, pentes, perfumes, fitas de qualidade para os laçarotes das mocinhas. 

Na vida itinerante, sem paradeiro fixo, acompanhavam-se de animais cargueiros que levavam no lombo caixas de madeira e malas de couro (bruacas) com os produtos. Não raro paravam nos mesmos pontos de pouso dos tropeiros, muladeiros e boiadeiros. Nos ranchos de descanso compartilhavam com os demais trabalhadores viajantes, os cantos, as superstições, as afinações de viola, as lendas, as receitas com raízes e folhas, os saberes do povo, incorporando e disseminando a cultura popular. 

Na tradição oral a maioria dos mascates eram "turcos", designação imprópria por demais genérica, dirigindo-se não só aos migrantes propriamente da Turquia, como também aos sírios e libaneses. 

Algumas vezes a Câmara Municipal de São João del-Rei aprovou resoluções visando regulamentar a atividade dos mascates. O Código de Posturas de 1887 (*) fixava o imposto sobre sua atividade (artigo 240):

- §48: "de cada mascate de figuras de gesso, imagens, quadros, ornamentos de casa e objectos semelhantes ... 5$000";
-  §64 "de vender em mascateação objectos de lata, cobre, etc... 10$000";
- §75 "de negociar, em mascateação, fazendas e objectos de armarinho, sendo em cargueiros... 20$000;
- §76 "de negociar, em mascateação, fazendas e objectos de armarinho, sendo em volumes conduzidos ás costas... 10$000;
§77"de negociar, em mascateação, fazendas e objectos de armarinho, em pequenos volumes conduzidos á mão...5$000.

Já o artigo 247 diz expressamente: 

"Aos mascates, caixeiros ou agentes de qualquer mascateação que, encontrados a negociar dentro do municipio não apresentarem a competente licença, serão multados em 30$000 e apprehendidos os objectos da mascateação e depositados até que paguem a respectiva licença e as despezas que acrescerem". 

Uma determinação da Câmara Municipal são-joanense do fim do séc.XIX, obrigava “sob multa de Rs 50$000 os mascates a trazerem as licenças pregadas e expostas nos bahús, taboleiros, canastras, etc.” (**)  

Nova regulamentação surge em 1905, com a Resolução nº321, de 03 de abril, que autorizava o agente municipal (equivalente ao atual cargo de prefeito) a nomear um arrecadador especial para a cobrança de impostos sobre mascates, podendo despender até trinta por cento sobre a respectiva arrecadação (***)

Burros cargueiros flagrados no Festival de Carros de Bois e Tropeiros de Tiradentes
relembram os velhos tempos das tropas e mascates.

Desapareceram velhos mascates, da forma tradicional como foram conhecidos a um século atrás. A atividade exaustiva foi alvo de taxas e cuidados das autoridades, naturalmente motivadas por sua itinerância. Deu lugar a outras formas de comércio. Porém, é certo que contribuíram para construção da nossa identidade, no intercâmbio com outros trabalhadores das estradas e caminhos, com os fazendeiros, sinhazinhas e roceiros nos arraiais. 


* Codigo de Posturas e Regimento Interno da Camara Municipal de S.João D'El-Rei. Ouro Preto: Província de Minas, 1887. 99p. 
** Jornal: São João d’El-Rey, n.10, 25/03/1899.
*** Jornal: O Repórter, n.25, 02/07/1905.
**** Texto: Ulisses Passarelli
***** Foto: Iago C.S. Passarelli, 05/10/2013 
****** Agradecimentos: a Luis Antônio Sacramento Miranda
******* Leia também: CAMINHOS DO FOLCLORE 

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Macumba: um esboço preliminar


O termo "macumba" é um africanismo, palavra de origem banto, do idioma quimbundo, ma'kumba. É aplicado a pelo menos dois instrumentos musicais: 

1) grande reco-reco de bambu ou taquara, que se toca em posição horizontal, apoiando-se um de seus extremos contra um anteparo (parede, pedreira, árvore) e outro na barriga; 
2) um pequenino atabaque de uso solitário. 

Pelo fato desses instrumentos rudes em tempos de antanho, serem usados para acompanhamento de cerimônias religiosas de procedência africana, por extensão, em uso genérico e indiscriminado se passou a chamá-las de macumba. “Foram tocar macumba”, ou seja, os instrumentos assim chamados. Macumba também é a dança ao som desses instrumentos. 

O termo original perdeu seu significado bem como os instrumentos. A palavra hoje só se usa em sentido pejorativo para designar formas religiosas de terreiro. Terreiro de macumba: onde se pratica “macumba”. Sessão de macumba: ocasião de um culto de “macumba”. Macumbeiro: outrora o tocador do instrumento chamado macumba; hoje, quem faz “macumbas”, culto de terreiro, ou deles participa. 

Macumba e macumbeiro, tal como feitiço e feiticeiro, mandinga e mandingueiro, se tornaram expressões de cunho pejorativo muito intenso, discriminando e abarcando qualquer religião mediúnica de matriz africana. Tanto que, muitos umbandistas, senão mesmo a maioria, não gostam de serem chamados de macumbeiros, termo que renegam e dizem só aplicável a quem pratica magia negra, tem parte com o demônio e trabalha com maldade. 

A difusão do termo macumba deu-se ao que parece a partir do Rio de Janeiro, designando as cerimônias de origem banto, de nação congo e angola, onde se cultuavam originalmente os inquices em vez dos orixás. Um estudo clássico é o de João do Rio (*), do início do século XX.


Cueca enfiada em buraco de um cupinzeiro (térmite): macumba para "brochar", isto é, gerar impotência masculina.
 Trilha do Carteiro, Serra de São José, Tiradentes/MG, 01/04/2014. 

Deixando por oras de lado qualquer detalhe cerimonial ou corrente religiosa em si, interessa de imediato a dimensão extensiva das macumbas quanto à vivência da cultura popular. Na resignificação da palavra o povo distingue de imediato as macumbas das simpatias e benzeções. 

As simpatias são inúmeras, para os mais diversos fins e são práticas caseiras, de cunho mais supersticioso que religioso, individuais, embora de conhecimento coletivo, praticadas pelo próprio indivíduo que a aprende por ouvir dizer de uma vizinha, colega, parente ou por ter escutado no rádio. Destinam-se de ordinário a benefício próprio sem grandes pretensões: para o dinheiro ter melhor rendimento, para a saúde, para se tornar mais atraente ao namoro, para o cabelo crescer com formosidade, para curar bronquite. O povo não enxerga nelas nada maligno ou pecaminoso. 

As benzeções são práticas de cunho mais diretamente religioso e dependem da intervenção de outrem, o benzedor, indivíduo muito respeitado nos meios populares por ter força, caridade e orações capazes de curar, abrir caminhos, afastar malefícios. Benzedor e macumbeiro não são a mesma coisa na cultura popular. A benzeção é uma prática não oficial, não é do rito da religião, ou, como queiram, é do âmbito do "catolicismo popular". Igualmente o elemento popular não a considera ofensiva a Deus e um bom benzedor é indivíduo de prestígio na comunidade, procurado em verdade por gente de várias correntes religiosas. 

Bosta do capeta: fungo que serve de matéria prima para pós mágicos... 03/08/2014.
Estrada do Mestre Ventura, São João del-Rei.

Já a macumba é mais mística na fórmula e mais secreta na prática e finalidade. Por vezes, envolve entidades espirituais ou é ofertada em locais de seu domínio, mas isto já é uma contaminação dos processos. Há a intervenção direta de um "feiticeiro" para sua concretização, ou indireta, quando ele apenas ensina como fazer. Na linguagem comum qualquer oferenda, despacho (**), ebó é considerado uma macumba. Porém estas são práticas religiosas das religiões de matriz africana e as macumbas propriamente ditas não se enquadram nesta categoria.

São ações individuais, mas, repetindo, fruto de um conhecimento coletivo, tipicamente desvinculados dos terreiros. Guardam em si uma prática cujo objetivo em geral é pessoal, voltado contra inimigos, para amarrar um parto, para causar um definhamento físico, para afastar um casal, para gerar uma discórdia, para causar impotência num sujeito que se porta como conquistador, para demover um vizinho dos limites que acaba se mudando para outro lugar. A macumba propriamente dita cambeia para o lado negativo, mais que o positivo, daí acontecer à margem da sociedade, ganhando seu opróbrio, símbolo de pecado, ofensa a Deus. 

O povo ao passar perto de uma possível macumba se persigna. Dá volta. Evita. Condena. Alguns abusados mexem com uma vara, desfazendo a disposição dos componentes. Joga-se água benta, urina, terra poeirenta, sal abençoado por um sacerdote. Uma maneira intuitiva de desmanchar o mal reinante e restabelecer o equilíbrio local, quebrado por um anônimo oculto na calada da noite que pôs a macumba. Abusados chutam a ponto de haver a expressão corriqueira "chuta que é macumba", que se enuncia diante de situações ou coisas deploráveis. Mas as carolas condenam. Diz que chutar é pior... pode reverter contra a pessoa, que enche o corpo de doenças, feridas, dores, amputamentos. É um atraso de vida.


Rodilhas de cipó à margem da Estrada Real: mecanismo de fechar o caminho de alguém.
Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno (São João del-Rei/MG), 06/09/2014.

É preciso atentar para o uso indevido do termo macumba aplicado de maneira indiscriminada às atividades religiosas dos terreiros, seja qual for sua corrente, pois em geral parte de um desconhecimento e traz no seu rastro a intolerância e a discriminação àquilo que é garantido por lei. 

Em torno da crença protetiva ou de (contra) ataque da supersticiosa e misteriosa macumba, desenvolveu-se um imenso complexo cultural de práticas e crenças, para fazer e desfazer, fruto de múltiplas influências étnicas, interligando o homem ao mundo invisível do sobrenatural. Disto fazem parte as chamadas "orações fortes" ou "orações bravas", que exigem um respeito extremado no enunciado, pois tem poder para desmanchar a macumba. Os próprios terreiros trabalham com frequência no ato de desmanchar macumbas, deixando muito claro a oposição a esta prática.

Concluindo, umbandistas e candoblecistas não são macumbeiros.

O estudo do significado cultural das macumbas para a sociedade revelará certamente o aspecto mais oculto do homem dentro de sua própria alma, seus medos mais arcaicos, seus anseios mais atávicos, suas práticas mais imemoriais na relação com o mundo mágico, no oposto da corrente materialista. 

Feitiço de amarração atado a uma árvore de embaúba
(Cecropia sp.). Mata do Chuveirinho, Santa Cruz de Minas/MG.
14/01/2017. 

Notas e Créditos

* As Religiões no Rio, 1904.

** Despacho:
l- Nossa Senhora do Bom Despacho: título mariano de pequena expressão devocional nesta região. De valor histórico é a Capela-oratório de Nossa Senhora da Piedade e do Bom Despacho, de 1745, no Largo do Rosário, onde começa a Rua Direita, em São João del-Rei. Não se confunde com as capela-passo (passinhos ou passos da Paixão). Foi construída diante da antiga cadeia (1740-1849), hoje Museu de Arte Sacra, para realização de missas campais para os prisioneiros. Em Santa Cruz de Minas houve uma Ermida de Nossa Senhora do Bom Despacho, numa encosta em aclive, na Serra de São José, erigida no século XVIII, junto ao antigo arraial do Córrego, terras do rico minerador Marçal Casado Rotier. Com sua morte e dos herdeiros daquelas terras a capelinha, com cemitério anexo, caiu em abandono e aos poucos foi ruindo. Correndo notícia que Marçal ocultara parte de sua fortuna enterrada nos túmulos e incrustada nas paredes, foi derrubada por gente ávida pela riqueza. Não a acharam. Tudo foi destruído. Vê-se vestígios da construção. O local ficou conhecido como “Cemitério” e toda aquela encosta ao pé da serra, “Morro do Bom Despacho”. 
2- Entrega de oferenda, trabalho pedido por um espírito ou objeto indesejável a uma entidade espiritual num local determinado. O material dos despachos é muito variado, conforme a classe de guias ou orixás: velas de várias cores, bebidas, comidas, objetos, flores, tecidos, etc. O local da entrega varia: Guias de Criança (Erês): jardins ou campos gramados, sob uma árvore; Pretos e Pretas Velhos: cruzeiros; Caboclos e Caboclas: matas, beiras de rio; Marinheiros: beira-mar, beira-rio; Boiadeiros: ranchos, currais, porteiras, etc.; Baianos: sob coqueiros; Ciganos e Ciganas: estradas de terra; Exús, Pombas-Giras, Malandros, Sacis, Quiumbas: encruzilhadas, cemitérios, bêtas, linhas férreas, gameleiras, cavas, valas, tronqueiras, etc.; Almas, Eguns: cruzeiros, lugares diversos sempre ao ar livre. Muitos aceitam serras e cachoeiras. eventualmente pedem lugares diferentes. O despacho em si é um ritual religioso e não folclórico. O interesse para a folclorística é indireto, pelo respeito que esses locais de despacho impõe aos Congados (e algumas Folias), quando, eventualmente por eles passam, sendo obrigatório o pedido de licença, feito por cantos, gestos, vênias, coreografias (sobretudo a Meia-Lua). Não há veneração, no máximo uma saudação, se o Capitão for “entendido”. Um canto de moçambique bate-pau:

“Me valha, meu Deus! 
Senhor São Bento! 
Que essa macumba, 
tem cobra dentro...” 
(São João del-Rei, Rua do Ouro, Bairro Alto das Mercês, 1996, 
Capitão Tadeu Nascimento de Sousa).

***Texto e fotografias: Ulisses Passarelli

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A Terra de Nhá Chica festeja o Rosário

Mais uma tradicionalíssima festa em honra a excelsa Nossa Senhora do Rosário se aproxima na zona rural de São João del-Rei: no próximo final de semana, os congadeiros a festejarão na vila de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, Terra de Nhá Chica.

Cartaz da Festa do Rosário de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno.
Papel couché, policromia, 42 x 29,5cm. Ano: 2014.

Conforme o cartaz aqui exposto, os festejos contam com a seguinte programação, no sábado, 18 de outubro:

15:00 h - Inauguração da Sede da Associação dos Artesãos, Moradores e Amigos do Rio das Mortes
17:00 h - Inauguração da revitalização do trevo de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, com a imagem de Nhá Chica.
19:00 h - Missa e logo após, procissão em louvor a Nossa Senhora Aparecida e amostra de artesanato.
22:00 h - Show Baile com o Clube da Seresta, na praça.

No dia 19, domingo:

00:00 h - Alvorada festiva
12:00 h - Santa Missa festiva, com a presença do grupo de Congado e Coral Força Renovadora
15:00 h - Posse de Reis e Rainhas
16:00 h - Intervenção Cultural sobre o Congado
18:00 h - Procissão de Nossa Senhora do Rosário, em seguida, Benção do Santíssimo
19:30 h - Entrega das Coroas e logo após queima de fogos de artifício.

O evento conta também com a participação da famosa e centenária corporação musical do distrito, a Banda Lira do Oriente. 

O Congo do Rio das Mortes em 2013, retratado após respeitoso canto no portão do cemitério. 

Aprecie o ritmo desta guarda de congo tão bem preservada clicando no link da postagem abaixo:



* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Festa do Rosário em São Gonçalo do Amarante

Conforme anunciado neste blog, aconteceu em espírito de cordialidade, fé e animação no último fim de semana, a festividade congadeira em honra à gloriosa Nossa Senhora do Rosário, no distrito são-joanense de São Gonçalo do Amarante, ex-Caburu. 

Nos links abaixo podem ser vistas algumas imagens da festa: 





Grupo Pilão de Nhá, do distrito do Caquende, durante a celebração em honra ao Rosário
em São Gonçalo do Amarante. São João del-Rei/MG. 12/10/2014. 

* Texto: Ulisses Passarelli
** Imagem: Iago C.S. Passarelli

sábado, 11 de outubro de 2014

Na minha terra se fala assim - parte 7

Bagunçar o coreto – esculhambar, produzir uma confusão, gerar problemas.
Barango (a) – cafona, de mau gosto, brega, de estética não convencional, fora da moda, espalhafatoso.
Baratinado – “Desbaratinado”, desorientado, sem rumo, sem saber como agir. Como uma barata que corre de um lado a outro sem saber onde se esconder.
Bicho de Sete Cabeças – situação hipotética de muita dificuldade, caso indissolúvel, impasse.
Boa carnadura – expressão que indica grande e rápida capacidade de cicatrização. “Fulano tem boa carnadura”.
Boa pinta – boa aparência, bonito, apresentável. “Fulano é boa pinta”. Por vezes, quando um homem quer se referir que outro é atraente para as mulheres usa dessa expressão como disfarce para não ter que assumir que o acha bonito.
Bom toda vida – expressão de intensificação daquilo que é bom: bom demais. Lugar excelente; alimento ótimo; pessoa extraordinária – são “bons toda vida”.
Bugiganga – objeto inútil, antiquado, tranqueira. Guardar bugiganga: colecionar souvenir.
Caçar chifre em cabeça de cavalo – procurar problema onde não existe; imaginar uma situação irreal onde de fato está tudo em normalidade; arranjar confusão.
Caçar sarna pra se coçar – entrar numa situação embaraçosa por si mesmo; procurar inadvertidamente caminhos que poderão complicar a vida.
Cafona – no sentido de barango, fora do padrão social vigente.
Cara de um, focinho do outro – “cara d’um, fucin’ do ôtro” é a pronúncia ordinária. Pode ter o sentido de semelhança física entre duas pessoas, como pai e filho ou irmãos por exemplo. Aparência semelhante.
Cara lavada – “Cara deslavada”. Despudorado, que não se envergonha, “cara de pau”, que não se importa em ser inconveniente.
Carango – gíria que significa veículo ruim, carro velho, automóvel antiquado, mas pelo qual se tem estima.
Carne de pescoço – indivíduo ruim, inflexível, atrevido, egoísta, que não mede esforços para alcançar um objetivo ainda que prejudique outros.
Casca grossa – grosseirão, sem polimento, mal educado, sem nenhuma gentileza.
Cata-cavaco – expressão indicativa de desequilíbrio ao andar, quase levando a uma queda ou a concretizando. “Sair de cata-cavaco”.
Catorze ofícios, quinze necessidades – diz-se do faz-tudo, homem de múltiplas habilidades desenvolvidas em razão das necessidades impostas pelas agruras da vida; aquele que trabalha muito, ganha pouco, é habilidoso e não tem seu valor reconhecido.
Céca – orgulho, frescura, nojo, asco, sentimento de superioridade. “Ele é cheio de céca, não come em casa de pobre”.
Cê-cê – mal cheiro, sobretudo do suor das axilas.
Chafosquento – delicioso. "O doce tá chafosquento". 
Chapado – o mesmo que chumbado. Bêbado.
Cheio de nhê-nhê-nhêm – cerimonioso, cheio de frescuras, não espontâneo. Vide o verbete seguinte.
Cheio de nove horas – cerimonioso; afeito a ritos cotidianos que impedem a naturalidade do viver.
Chumbar – beber em demasia, embriagar-se. “Saiu chumbado do bar”.
Cipoada – lambada, bordoada, correada, chicotada, chibatada.
Cobra fumar – situação de perigo ou ameaça extrema; iminência de conflito. “Agora que a cobra vai fumar”. 
Comigo é “um” ou “quarenta”; quer ver, experimenta... – expressão de ameaça que indica extremos, ausência de meio termo (diplomacia, perdão): o se é amigo ou não é, ou é leal ou não é.
Contar com o ovo no cu da galinha – se valer algo que não se concretizou; confiar numa situação virtual.
Corriola – gente sem valor, pessoas de poucas qualidades. Andar com corriola: conviver com pessoas desqualificadas.
Cri-cri – chato, inconveniente, aporrinhador, encrenqueiro.
Cubu – quitanda de roça usada na alimentação de trabalhadores braçais: bolo de massa grosseira, ressecado, mas que tem “sustança” (que sustenta, mata a fome). Seu aspecto é  pouco apetecível, estufado, de casca grossa e trincada. Por extensão e pejorativamente, aplica-se a mulheres muito feias.
Cuspido e escarrado – tal e qual, extremamente semelhante. Ver: Cara de um, focinho do outro.
Cutucar a onça com vara curta – abusar da segurança, arriscar-se demais, provocar um poderoso.
Da pá virada – “do arco da velha” (ver “do rabo da Velha”); irrequieto, hiperativo, que arranja soluções, que não se aperta ante as dificuldades; “safo”, sagaz.
Dançar de acordo com a música – agir conforme a circunstância induz. Comporta-se de acordo com o que o momento sugere.
Dar murro em ponta de faca – lutar contra um impasse; pelejar na resolução de algo que efetivamente não tem solução.
Dar na pituca – ter uma atitude ou ação repentina fruto de uma ideia nova.
Dar o troco na mesma moeda – não perdoar; retrucar no mesmo tom uma ofensa; vingar-se com os mesmos meios; “olho por olho, dente por dente”.
Dar passo maior que a perna – agir além dos limites; fazer algo adiante da função que lhe pertence; comprar algo além das posses financeiras.
Dar uma esfrega – bater. Agressão física ou verbal. “Deu nele uma esfrega que parou de fazer palhaçada”.
De cabo a rabo – expressão que indica totalidade, processo completo. “O delegado investigou o caso de cabo a rabo”. De ponta a ponta, do começo ao fim.
Dedel – termo intensificador: “bom pra dedel!” (muito bom); “runhe pra dedel”! (muito ruim)
Desinsarado – mal curado, que não completou o processo de cura, que não inteirou a melhora. Convalescente. “Ele piorou porque estava desinsarado e saiu na chuva".
Desmiolado – literalmente, “sem miolo”, de “miolo  mole”: sem raciocínio, fraco das ideias, imbecil, sem juízo, pouco inteligente.
Dia de São Nunca – expressão para indicar um dia imaginário que nunca chegará; uma data muito adiantada no futuro que não alcançaremos; data longínqua de uma pagamento ou de uma pessoa mudar de comportamento (situação improvável). “Ele vai parar de beber cachaça no dia de São Nunca”.
Dia-hoje – expressão que reforça a ideia de presente, agora, neste momento, hoje mesmo, ainda a pouco. “Dia-hoje encontrei com ela.”
Difluxo – secreção, corrimento. Estar com difluxo: expectoração.
Do cu riscado – travesso, hiperativo, de pensamento rápido, inimigo da letargia, sagaz. “Fulano é do cu riscado...”
Do rabo da velha – traquinas, “artioso” (que faz arte, no sentido de travessuras), ativo, esperto. “Menino do rabo da velha!”

* Texto: Ulisses Passarelli

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A Arte Trapista

Em tempos hodiernos muito se fala sobre reciclagem como uma atitude ecologicamente correta. Nossos artesãos contudo conhecem esta lição desde longa data. Do aproveitamento de aparentes inutilidades surgem peças úteis e de efeito decorativo, nas quais sua criatividade se expressa em formas, cores e soluções inusitadas de composição estética.

Os artesãos que trabalham com tecidos sabem muito bem o valor de um trapo, pedacinho de pano refugado dos ateliês de costureiras, alfaiates e confecções. Dos retalhos compõe tiras, rodelas, triângulos, semi-círculos, trouxinhas (fuxico) e outras figuras, além de recortes figurados e apliques, combinando formas e cores. 

1- Detalhe de um tapete de Santa Cruz de Minas. Década de 1990. 

A criatividade gera peças singulares: vários triângulos de pano costurados em alinhamento e em carreiras sobrepostas a pequena distância cria um imbricamento, simulando o aspecto de escamas de peixe. E assim surge um interessante tapete ou forro para bancos de madeira. Em outra composição, trapos da mesma cor são costurados ao tecido de fundo de forma a compor um losango; por dentro ou por fora outro losango de cor diferente envolve ou é envolvido pelo primeiro, um pouco maior ou um pouco menor, e assim sucessivamente, em geometria que alterna duas cores ou várias. 

Destes trapos surgem peças inteiras, costurados os elementos sobre um tecido mais grosseiro de fundo, não raro um saco de juta, também reaproveitado. Daí surgem forros para montaria (tais como pelegos de arreios e selas), mantos, tapetes, forros de almofada e sofá, panos de mesa (circulares e quadrangulares), cobertura de assentos de carros. Pequenas figuras de trapo colorido são aplicadas sobre outras composições artesanais enriquecendo cortinas, colchas, pet-works, bonecas e bichinhos. 

2- Bonecas artesanais de pedaços de pano.
São João del-Rei/MG - década de 2000.

A arte trapista ainda é muito difundida. Várias regiões a conhecem e nas Vertentes se faz corriqueira nas roças e é comum também nas cidades, utilitária e/ou decorativa, possibilitando renda, passa-tempo e ensejando a realização de oficinas. Quem não se lembra das tradicionais bonecas de pano? Brinquedo das antigas, fez a alegria de gerações de meninas, hoje em ocaso pela força da modernidade. 

3- Tapetes, Santa Cruz de Minas, década de 2000.
O tapete da quadrícula superior esquerda foi confeccionado com invólucros de balas. 

4- Colcha de retalhos. São João del-Rei, década de 2000. 

Notas e Créditos

* Texto, fotografia 4 e acervo de peças: Ulisses Passarelli
** Fotografias 1, 2 e 3: Iago C.S. Passarelli

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Festa do Reinado no Caburu

Feriado de 12 de outubro terá congado

Cartaz-programa da Festa do Rosário de São Gonçalo do Amarante, 2014.
Papel-couché, 42 x 29,5cm, policromia.


Conforme reza a tradição, no segundo domingo de outubro, acontece no distrito de São Gonçalo do Amarante, ex-Caburu, na zona rural de São João del-Rei, a animada Festa do Reinado, em honra a Nossa Senhora do Rosário, quando os dois grupos de congado do lugar, um dos quais, uma centenária guarda de congo, vem à rua louvar a santa querida e recepcionar os congados visitantes de outras cidades. 

O mastro do Rosário já está fincado, desde o domingo passado, 28 de setembro, quando o congo veio à praça após um ensaio geral, ainda sem o fardamento dos dançantes, como é costumeiro.

Mastro do Rosário (esq.) e Nossa Senhora Aparecida (dir.),
das duas guardas do lugar,na festa do ano de 2013. 

A festividade principia na próxima quinta-feira às 19 horas com o primeiro dia do tríduo preparatório na bela igreja daquela vila. No dia seguinte, da mesma forma. No sábado o tríduo é mais cedo, 16:30 horas, com missa participando o coral da comunidade, seguida de uma procissão de Nossa Senhora Aparecida.

Dia 12 de outubro a alvorada ocorre 5 horas da madrugada, com os caixeiros festivamente marchando pela rua, batendo os tambores com o toque típico "Vamos s'imbora, Vitalina!". Pelas nove, aproximadamente, os congados começam a girar pela vila e após o café da manhã, 10:30 horas, uma apresentação do grupo de inculturação Pilão de Inhá, do também distrito são-joanense do Caquende, recebe uma nota especial de atenção. A seguir acontece a entrega dos troféus aos grupos e almoço para os dançantes das guardas. O Reinado é recolhido à tarde, 14 horas, para a missa campal das 15:30 horas, que conta com a participação especial do citado grupo do Caquende. Na sequência acontece a concorrida Procissão do Rosário, que ao se concluir dá lugar à Benção do Santíssimo Sacramento. Está programado para este ano um show de encerramento, com Edivar e os Garotos de São Gonçalo do Amarante. 

O evento é o mais importante do calendário festivo do distrito e uma oportunidade ímpar de ver os congados do lugar em seu ambiente próprio, com toda a rica musicalidade que lhes é característica. A tradição do Rosário tão arraigada a São Gonçalo do Amarante se anuncia mais uma vez, animada e firme, convidando-nos para prestigiá-la.


* Texto e foto do cartaz: Ulisses Passarelli
** Foto dos mastros: Iago C.S. Passarelli
*** Veja também: Vamos'imbora, Vitalina!

sábado, 4 de outubro de 2014

Cabeça, cabeceira, cabeçalho

A cabeça é o símbolo do intelecto, do raciocínio, sede do pensamento, das vontades, elo de ligação do sexto sentido com o mundo espiritual. Dominar a cabeça é dominar o indivíduo. A cabeça é o elemento central da individualidade e do juízo, local da mente, de importantes chacras.

As tradições sobre a cabeça são inumeráveis. "Perder a cabeça" é expressão usadíssima para indicar descontrole diante de uma situação. Equivale a perder o juízo. "Cabeça de vento" e "cabeça de bagre" são indicativos de personalidade fraca, pouca preocupação, falta de responsabilidade, ideias pouco consistentes. Mas na gíria, o sujeito de boa prosa, assuntos relevantes, raciocínio bem coordenado é um "cara cabeça", ou tem "cabeça boa", ou simplesmente é "cabeça". "Passar a mão na cabeça" é encobrir faltas, ser conivente com os erros de fulano de tal. "Fazer a cabeça" é uma expressão comum na umbanda, na quimbanda, no candomblé com o sentido de se deixar batizar no santo, no orixá regente da cabeça do médium. "Cabeça feita" tem este sentido religioso de preparação espiritual completa e por extensão um significado secular de inteligência, experiência, equilíbrio: "fulano é cabeça feita", quer dizer, tem suas próprias opiniões e não se deixa influenciar.

A Bíblia relata a tocante morte de São João Batista por decapitação induzida pela maliciosa filha de Herodíades (que se chamava Salomé, segundo fontes apócrifas), sendo sua cabeça ofertada num prato (Mt. 14, 1-11; Mc.6, 14-29). Noutro episódio mais remoto, Judite corta a cabeça do perverso Holofernes (Jdt.13, 9-11). Na famosa Procissão do Enterro, aqui mesmo em São João del-Rei (e em outras cidades) vemos entre os figurados, os personagens bíblicos com roupas de época carregando horrendas cabeças de papel-machê para relembrar Salomé e Judite. Sua presença desde sempre desperta a curiosidade das crianças.

Uma das invocações marianas é Nossa Senhora da Cabeça, para quem se reza à procura de boa mente, ideias claras, reflexão positiva ante questões complicadas, contra loucura e para combate à cefaleia (dor de cabeça).

Evita-se deixar outras pessoas tocarem nossa cabeça com as mãos pois transmite influências negativas para si, ou pode-se ficar dominado por quem passou a mão. Criança ao contrário não há problema em razão da proteção especial que usufruem em virtude de sua inocência.

Uma tradição imemorial e cosmopolita é a das figuras de proa, muitas vezes representando cabeças entalhadas na ponta dos barcos, daí serem também conhecidas por cabeças de proa. Por vezes de fundo totêmico, outras vezes em função de amuleto, ou como mero adorno, em várias culturas se apresentam configurando dragões, touros, carrancas, leões, seres mitológicos e antropomórficos.

No imenso interior, longe das grandes águas, o costume é entalhar cabeças na ponta de bastões e em outros objetos, evocando por vezes elementos do mundo espiritual. Para Saul Martins essas cabeças esculpidas são sinais de totemismo “forma primitiva de religião, espalhada entre quase todos os povos autóctones do mundo”. Enquadra nessa categoria as carrancas do vale do Rio São Francisco, arrematando o bico das embarcações (cabeça de proa). Cita também as cabeças esculpidas em “coronha de espingarda, no pau da bengala, na tampa do polvarinho”. Exemplifico ainda: em bastões de capitães de congado, cajados de negros-velhos da umbanda, cetros de reis das festas do Rosário, cabos de relhos, em cabos de canivetes, facões e facas (*) 


Bastão de moçambiqueiro, cuja iconografia popular evoca as almas de ex-escravos,
os negros velhos das religiões de matriz africana. Passa Tempo/MG, 08/06/2014. 





Cabeça aparece também com o sentido de ponta, extremo. Cabeça do prego, cabeça da tachinha, cabeça do cravo: local no qual se bate para fincar. A glande é a "cabeça" do pênis. 

Cabeçalho do carro de bois é a extremidade afilada na qual se atrelam a junta de bois de canga (sob jugo), numa alça de ferro.

Cabeceira é o local da cama onde se deita a cabeça, oposto aos "pés" da cama. A cabeceira é local do repouso e sobre ela não se deposita objeto algum, nem tecidos de cor escura. Isto poderia afetar a qualidade do sono. É a parte da cama onde se apoia a cabeça para deitar. Simbolicamente é lugar onde o anjo-da-guarda nos zela, onde está a força de nosso juízo. Portanto é onde se deve por imagens de santos e objetos bentos para proteger a pessoa, terços pendurados, medalhinhas de santos, cordões bentos; livros escolares para as crianças apanharem gosto pelo estudo. Assim não se deve deitar ao revés, ou seja com os pés na cabeceira pois prejudica estas proteções. Dormir no lugar do outro ou com seu travesseiro absorve os segredos de sua cabeça e assim se descobre seus mistérios (São João del-Rei, 2001). 

Cabeceira é também o olho d'água, mina, nascente de um curso d’água. "Chuva de cabeceira" é a chuva que cai no rumo das nascentes, abastecendo os mananciais. Num rebanho bovino, as vacas leiteiras da melhor qualidade do plantel, produzindo a maior quantidade de leite são as "vacas de cabeceira" ou "vacas de ponta-de-mojo". 

Em São João del-Rei, como também em Resende Costa, houve o famoso Bloco dos Cabeções, agremiação carnavalesca de outrora, formada por estafermos cabeçudos, saudosos bonecões macrocefálicos gingando no ritmo do momo. 

Os congadeiros sabem muito bem que a melhor forma de saudar ao mastro é bater-lhe a cabeça de leve, tocando a testa, uma vez pelo menos, ou três, número ideal, sempre se pedindo licença antes, pois o mastro tem um dono. Em geral os capitães adotam para si e seus soldados algum tipo de cobertura para a cabeça, tendo cada guarda de congado seu estilo que ultrapassa o sentido de uniforme: chapéu, boina, quépi, casquete, turbante, lenço, boné, capacete, cocar. Acham temerosa a cabeça exposta no momento do congado, pois pode dar entrada a maus pensamentos. "Cabeça pelada", dizem, faz mal. 


As bandeiras sagradas das folias servem também ao ritual de abençoar a cabeça. Os devotos das casas visitadas beijam a bandeira da companhia de foliões e a passam sobre a cabeça num giro, principalmente sobre a cabeça das crianças, que é para apanhar juízo. Os congados fazem semelhante mas entre as folias é bastante típico. 


Desde a antiguidade clássica com os monstros gregos mitológicos de múltiplas cabeças (Cérbero, o infernal cachorro guardião e a Hidra de Lerna, morta por Hércules), que as tradições sobre a cabeça são numerosas e de imensa amplitude geográfica.


Referências Bibliográficas


Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave Maria, 1965.
MARTINS, Saul. Os Barranqueiros. Belo Horizonte: UFMG / Centro de Estudos Mineiros, 1969. 



* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli
*** Outro exemplo é a casaca (reco-reco de madeira, usado pelas bandas-de-congos no estado do Espírito Santo), que termina por uma cabeça de boneco entalhado no corpo do instrumento.
**** Uma extensão dos temas desta postagem poderá ser avaliada no texto sobre o folclore do cabelo.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Oração do Peregrino e o Cabrugeiro

No universo da cultura popular, cabrugeiro é o sujeito que mexe com magia negra. Espécie de feiticeiro. Diz uma das versões da “Oração do Peregrino”: 


“Oração do Pelengrino, 
quando Deus era menino,
que andava pelo mundo 
com sete candeias acesas 
e sete livros a ler: 
feiticêro, mandinguêro, cabrugêro 
catimbozêro e cangerista, 
comigo não tem poder! 
Nem de dia, nem de noite
nem hora nenhuma, amém!” 

Sua jaculatória completa diz: “Deus pode! Deus quer! Eu também quero e posso e faço enquanto quiser!” (*)

A origem do termo não é clara e vem carregada de repulsa. Talvez o termo cabrugeiro possa estar corrompido: Caldas Aulete registra o verbete "cabungueirocomo: a) “indivíduo encarregado do despejo ou recolhimento de cabungos” (= penico, urinol, latrina); b) “sujeito porco ou desprezível” ... Aí estaria o sentido de opróbrio social aos praticantes?

Talvez, porém, seja alteração de "cabuleiro", praticante da cabula, religião mediúnica de matriz africana, origem banto, descrita no passado para o estado do Espírito Santo mas quiçá conhecida em outras paragens. 

Noutra possibilidade, Cascudo registra no seu dicionário o verbete ‘caborje’ no sentido de amuleto, patuá, mandinga defensora. Cabrugeiro viria de “caborjeiro”, o feiticeiro que prepara caborjes? 

De qualquer forma está implícito nesta oração a preocupação de se livrar dos encantadores, ao se enumerar vários estilos de práticas religiosas e exorcisá-las com palavras que apelam para o número cabalístico sete, símbolo da totalidade espiritual. A Oração do Peregrino visa abrir os caminhos dos empecilhos tramados pelos inimigos que trabalham na magia, com o mundo desconhecido, místico, espiritual, acreditando-se que rezando-a com fé, tais feiticeiros não terão poder, em hora nenhuma, amém!



Face de Cristo. Detalhe de um cruzeiro.
Largo da Cruz (Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno).
São João del-Rei/MG, 2013. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário Brasileiro de Folclore. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.
AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Delta, 1978. 5v. 3998p.


Notas e Créditos

* Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1995
** Texto e foto: Ulisses Passarelli