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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 4 de novembro de 2014

Os múltiplos empregos da cabaça

Cabaça (*) ou porungo é o nome aplicado ao fruto seco da abóbora d'água, Benincasa hispida, uma planta trepadeira cucurbitácea, e da mesma família, as plantas do gênero Lagenaria, do qual a botânica reconhece meia dúzia de espécies.

A voz do povo distingue e nomina algumas variedades de forma, dentre as quais: 

Galinha pintada, com corpo feito de cabaça e detalhes de biscuit.
Artesanato figurativo de Santa Cruz de Minas. 

- “cabaça de pescoço”: com uma parte bojuda e outra com intensa constrição, muito procurada para fazer recipientes para líquidos, à guisa de um cantil; 
- “marimba”: cabaça longa e estreita, por vezes curva, de largo uso ornamental (envernizada ou pintada). Por sua forma representam uma serpente com ela. Uma única referência oral apontou para seu uso na confecção de uma espécie de instrumento de sopro primitivo, com perfurações para interpor os dedos na vedação e liberação do ar como numa flauta doce. Teria sido usada a cerca de um século num velho e desaparecido congo na cidade de São Tiago, de um tal "Rafaelzinho" (**); 
- “cabeça de negro”: designação muito antiga da cabaça arredondada. Serrada ao meio é preferida para confecção de recipiente utilitários, semelhantes a tigelas. Além do uso doméstico tem largo emprego nos terreiros de religiões de matriz africana para acondicionar oferendas e bebidas dadas às entidades espirituais; 
- "cabacinha": pequeninas cabaças ideais para ter as metades serradas usadas como medida para tomar cachaça. 

Detalhe de um réu-réu, instrumento rude usado nas encomendações de almas rurais:
uma peça denteada ao centro, em forma estrelada, é recortada de um pedaço de cabaça
e produz o som ao girar, passando pela lasca de taquara. Ponte Nova (Bias Fortes/MG). 

Todas essas cabaças são usadas tanto no artesanato quanto para fazer utensílios toscos de cozinha. Em verdade não apenas as Lagenaria, mas também o próprio fruto seco do coco da baía (arecaceae) e do cuité ou cuieté (Crescentia cujete, bignoniaceae), esta não comestível.


Cuia, vista pela face côncava (esquerda) e convexa (direita).
São João del-Rei. 

Serradas ao meio em linha reta formam como que duas tigelas, chamadas “cuias” (do linguajar indígena, ku'ia); se são serradas ao meio não em linha reta mas em zigue-zague, formam uma “cumbuca”, onde as duas metades se fecham pelos encaixes denteados, intertravando-se. Cuias e cumbucas tem largo uso na cozinha caipira, como medida ou vasilhame, para o fubá, o arroz, o feijão, a canjiquinha, a verdura picada para ser afogada. 


Pequenas cuias de tomar cachaça.
São João del-Rei. 

As cabaças no artesanato servem para compor, quando inteiras, o corpo de bonecos e galinhas e, quando serradas, lapinha ou presépio. Santa Cruz de Minas é um grande polo produtor desse artesanato. Exemplares de maior dimensão se prestam a caixa de ressonância para instrumentos musicais de cunho artesanal.

Recipiente para líquidos: 
cantil feito de cabaça. São João del-Rei. 

As cabaças tem largo emprego na confecção de amuletos e guias. Seu recipiente fechado simboliza o segredo guardado da profanização; indica a circunscrição da magia, o seu isolamento de influências negativas exteriores. As mirongas (firmezas) que guardam em seu interior são inconfessáveis: sejam pequenos objetos, orações escritas, sementes, pós, etc.

Amuleto feito com cabacinha, acrescida 
de palha da costa e búzios.São João del-Rei. 

Alguns pontos de firmeza, cantados em São João del-Rei, revelam o ato de serrar para produzir cuias: 

Ai, eu serrei coco,
pra cuia fazê,
pra lavá garapa
pro vovô bebê.

Eu tava serrando coco,
olhando pra baianinha,
a serra saiu do prumo,
o coco saiu da linha.

Cabacinha, arrematando uma guia, feita com 
sementes de olho de boi. São João del-Rei. 

Por fim é bom lembrar que as queijarias produzem o queijo-cavalo, algo semelhante à mussarela, mas disposto em forma de uma cabaça de pescoço, conservado pendente pela constrição. Por isto mesmo, seu nome mais popular é"queijo-cabacinha".

Cabaça perfurada para aninhamento de pássaros, instalada no beiral
de uma casa no povoado da Canela, São João del-Rei. Foto do autor, 10/11/2013.

Notas e Créditos

* Cabaça (fruto seco), nas Vertentes, é sempre no feminino. No masculino é sinônimo chulo e muito popular de hímen, símbolo da virgindade feminina. “Tirar o cabaço”: perder a virgindade. Cabaço é também um termo pejorativo aplicado a uma pessoa inexperiente em qualquer setor da vida ou do trabalho. Exemplo: "ele é cabaço na marcenaria".
** Informante: José Camilo da Silva, Bairro São Dimas, São João del-Rei, 1993.
*** Texto: Ulisses Passarelli.
**** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, novembro/2014, exceto indicação em contrário na legenda.

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