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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 20 de março de 2015

Quinta-feira de Trevas

"Trevas" é como popularmente se chama a quinta-feira da Semana Santa à guisa de um sombrio epíteto. Quinta-feira Santa. O nome é um corolário de todo o ideal de terror que se infunde nos fiéis durante a quaresma. 

Foi o dia no qual Cristo foi aprisionado pela traição de Judas Iscariotes. Em São João del-Rei, é o dia tradicional da “visitação das igrejas”, quando os devotos à partir das 18 horas vão aos velhos templos do centro histórico visitar um por um, fazer suas orações e ver as montagens cênicas alusivas aos últimos dias de Jesus como humano. Cada templo se esvazia de seus bancos ou os arreda; o assoalho é recoberto por muitas folhas de rosmaninho, que exalam odor característico, muito intenso; todas as imagens dos altares estão recobertas por panos roxos; a luz está atenuada para melhor efeito da montagem, pois é sobre ela que se focaliza a iluminação; como fundo musical se ouve música barroca. A porta da igreja, meninos portando matracas, batem-nas de tempo em tempo, à chegada dos fiéis, apresentando-lhes uma sacolinha para recolher o óbolo, gritando mecanicamente ao estendê-la: “para a cera do Santo sepulcro!” e matraqueiam. As ditas montagens são compostas por grandes painéis pintados com figuras bíblicas, ou, mais comumente, por manequins vestidos à imitação de apóstolos, judeus, etc., ou com a mesma função, santos de roca, despidos das vestes habituais e trajados com roupas e adereços que os fazem representar personagens. Vasos de flores, objetos variados, túnicas, barbas postiças, candelabros, cântaros, etc., vão compondo o cenário. Numa igreja se representa a cena da última ceia; noutra, por exemplo, o calvário; ainda outra, a ressurreição de Lázaro, além de outras cenas clássicas. A porta de cada igreja, adultos e crianças vendem cartuchos de amêndoas, arnica, alecrim de horta, manjericão e rosmaninho, considerados bentos nessa época. Aliás, os altares também se revestem dessas ervas medicinais. Os passinhos estão também abertos à visitação, inclusive o oratório de Nossa Senhora da Piedade e do Bom Despacho. 

Mais tarde, terminadas as visitas, aos fundos da Catedral do Pilar, num grande palanque, tendo por fundo um painel com a pintura da mesa da Santa Ceia, realiza-se a solene cerimônia do Lava-pés, quando o bispo com uma bacia, água e uma toalha, lava e enxuga os pés de doze padres, fazendo lembrança do gesto humilde de Jesus para com seus apóstolos. Grande multidão assiste à tocante cerimônia. Em muitas cidades ela é realizada, com maior ou menor pompa. O clima barroco e da música sacra são-joanenses a fazem em tudo especial. 

Nas roças, ocorre ou ocorria, nessa noite, um interessante costume, agora, caso ainda existente, banido para os locais mais recônditos: indivíduos no escuro e calada da noite, vagando pelos quintais alheios, roubavam coisas fúteis, objetos de pequeno valor e ao levá-los tinham o cuidado de frisar bem o fruto do roubo com o respectivo indivíduo roubado. 

No Sábado da Aleluia, tudo quanto fora roubado surgia no interior da Chácara do Judas e ninguém o retomava para si, mesmo reconhecendo o seu objeto que sumira. Quando da leitura do Testamento do Judas, ao ser citado fulano ou sicrano nos versos, o mesmo recebia por herança o próprio objeto que lhe fora furtado. 

Esse roubo consentido, não traz assim prejuízo material e em si contém uma crítica por ser ao seu próprio dono, aos olhos da comunidade, um presente devolvido pelo traidor de Cristo, uma farpa moral portanto. O sentido simbólico é profundo. 

Em alguns lugares essa quinta-feira é justamente chamada “Dia da Judiaria”, pois além da ação dos larápios, fazem ainda travessuras a horas mortas, como abrir porteiras e galinheiros, comportas de moinhos, etc. Tudo é permito nesse dia “sem lei”, pois a lei maior do mundo, o Messias, foi preso por traição. Judiaria é termo que remete aos atos dos judeus que condenaram o Filho de Deus, como também aos profetas que lhe prenunciaram. Essas questões ligadas aos judeus são constantes na cultura popular cristã. Com base nisso é que existe até o verbo “judiar”: fazer maldades, e daí, judiado, judiação, judiaria ...

Uma quaresmeira (melastomatácea) da Serra de São José,
flor muito representativa do período em questão.
O roxo é a cor símbolo da quaresma.
* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli, 2015

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