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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quinta-feira, 2 de abril de 2015

Nossa Senhora do Desterro

Na hagiografia popular, a imagem de Nossa Senhora do Desterro é muitas vezes referida como "Fuga para o Egito". Representação estampada, pintada ou em forma de imagem de gesso, madeira, etc., do episódio bíblico da fuga da Sagrada Família para o Egito, após São José, o Carpinteiro, ter sido avisado em sonho por um anjo, que Herodes mataria os inocentes (Mt 2, 13-22). 

Figura assim numa viagem: a Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo, sobre um jumento e São José puxando-o por uma corda, tendo na outra mão o farnel, como viajante. Os evangelhos canônicos não descrevem a viagem em si, seguindo a narrativa direto para o batismo e início da vida pública de Jesus. Assim se desconhece os feitos de sua infância. Porém os textos apócrifos narram a infância de Jesus, os temores dessa viagem e os fatos acontecidos. 

O Evangelho Apócrifo da Virgem Maria, por exemplo, descreve a penosa viagem repentina até Alexandria, com o burrico passando imperceptível em meio à profusão das caravanas de mercadores. O Evangelho do Pseudo-Mateus narra fatos extraordinários e prodígios acerca desse desterro, com feras ao lado do Menino Jesus como se fossem animais mansos, a altíssima palmeira se reclinando sob sua ordem para abastecê-los de frutos, dentre outros fatos lendários. Já o Papiro Bodmer e o Proto-evangelho de Tiago oferecem uma versão diferente: ante o massacre dos inocentes, não citam a fuga em si, mas relatam que a Virgem Maria enrolou o Messias em faixas e o ocultou dos soldados de Herodes numa manjedoura de bois. 

Considerados sagrados pelo povo, os textos apócrifos contribuíram sobremaneira para a composição de várias lendas relacionadas a este episódio bíblico. Do amálgama de fontes antigas e tradições seculares brotou a crença. São correntes na região por exemplo, fatos lendários relacionados à saracura, ao gambá e à embaúba, relacionados à Fuga para o Egito, em parte já narrados neste blog, conforme indicam os links. A árvore da embaúba (família urticaceae, gênero Cecropia) ficou marcada na crendice: durante a fuga, atrás de uma velha árvore dessa espécie, muito grossa, ocultou-se Nossa Senhora com Jesus ao colo, de soldados romanos que os perseguiam. Muito mais tarde, teria sido numa embaúba que Judas Iscariotes se enforcou. A biologia não consente tal afirmação, pois o mapeamento botânico indica Cecropia como vegetal da América e não do Oriente Médio, onde não existe. Para a umbanda a embaúba é uma árvore de exu. 

Da Fuga para o Egito surgiu também a imagem de São José de Botas, o viajante, de cajado à mão, botas de canos altos aos pés. Nos tempos coloniais nas Minas Gerais, como aqui em São João del-Rei, donde procedem estas observações, São José de Botas foi muito querido como uma espécie de patrono emboaba e até mesmo dos bandeirantes paulistas, por sua figura de peregrino, caçando uma nova terra. Sua imagem aparece nalgumas igrejas. Protegeria os aventureiros que de longe vieram às nossas betas à cata do ouro, também eles, de alguma forma, desterrados... 

Desterrar é retirar, sair, expatriar. Então, crê o povo, que quando se reza para Nossa Senhora do Desterro, os males são desterrados de nossa vida, da casa, do trabalho, do caminho. É sob a força dessa invocação sagrada que fogem espavoridos os maus espíritos, as assombrações, as potências malignas que perturbam os seres humanos. Sua prece e invocação tem o poder de um expurgo, uma catarse, um livramento. Daí ser tão querida e respeitada. A analogia se faz pela imagem: assim como a Sagrada Família teve de sair de sua terra e fugir dos maus, hoje, em estado glorioso, tem o poder de fazer o contrário, fazendo os maus fugirem. 

Diante desse entendimento é que sabiamente, diz o povo em tom exclamatório ao ver ou ouvir um fato assombroso: "Nossa Senhora do Desterro!" É o que basta para isolar o devoto daquele malefício. Mas há sempre os mais supersticiosos, que na oportunidade complementam automaticamente com três batidas da mão direita fechada sobre uma superfície de madeira, dizendo: "isola!"

Fuga para o Egito. Cerâmica figurativa artesanal do Vale do Paraíba.
Acervo do autor. Artesã: Ismênia. Taubaté/SP. Déc. 2000.

Referências Bibliográficas

Bíblia Sagrada. 6.ed. São Paulo: Ave Maria, 1965. 1602p. + anexos.
MARTÍN, Santiago. O Evangelho Secreto da Virgem Maria. 24.ed. São Paulo: Paulus, 2012. 223p. 

MORALDI, Luigi. Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Paulus, 1999. 393p.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli 

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