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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 10 de maio de 2015

Queima do Judas em Santa Cruz de Minas

Nas tradicionais queimas de judas os testamentos são manuscritos importantes no mecanismo de folk-comunicação. Através deles o povo, anonimamente e com muita verve, anuncia em versos, em leitura a alta voz, a herança deixada por Judas Iscariotes, o traidor de Jesus, representado a cada ano por um boneco grotesco, que é explodido em praça pública por meio de bombas inseridas em seu enchimento. 

Assim é que em quase todo o país (*), no Sábado de Aleluia ou no Domingo da Páscoa, lá surge o boneco para opróbrio do fato nefasto da traição, qual um mecanismo coletivo de catarse, expurgo dos males sociais. Na mordaz herança que deixa em seu testamento versificado, as figuras polêmicas, populares ou indesejadas do lugar _ sobretudo os políticos,os ranhetas, as fofoqueiras _ vão ganhando presentes imprestáveis anunciados pelos versos, sob o apupo da platéia: a dentadura do judas, suas botas surradas, seu pinico imundo e outros trastes simbólicos. Os "agraciados" são referenciados pelo primeiro nome, ou por uma referência familiar ("João do Antoninho", ou seja, João, filho do Antoninho; "Teresa do Zé", ou seja, Tereza, esposa do Zé), ou pelos apelidos. É uma forma engraçada de dizer também sobre o conceito público que a pessoa goza naquela sociedade.

"O sr. Zé Bicho é festeiro
divertido do lugar,
deixo o pau de angu
ele pode vir buscar."

Uma curiosidade interessante destes testamentos é que entremeados aos versos propriamente de herança, por vezes surgem outros contendo avisos e ironias (**):

Em alguns casos o testamento inicia diretamente com os versos da herança, em outros é precedido por um termo de abertura (***) ou palavras iniciais, como as que se reproduz abaixo, da primeira metade da década de 1990, de quando Santa Cruz de Minas ainda era distrito de Tiradentes (****):

"Ilmo. Sr. Prefeito de Tiradentes e os demais da Câmara municipal desta comarca; ilmo.sr. Comandante do destacamento de polícia sediado em Santa Cruz de Minas e as demais autoridades presentes... caros colegas e amigos: para vocês é um dia de festa, dia de muita alegria, pois nesta data comemora-se em todo o Brasil a queima do judas. Para iniciar o nosso testamento vou deixar a herança que lhes pertence."

Também dessa cidade, procedem do mesmo período, alguns versos de herança escritos sob a forma de sextilhas, bem incomuns na região. No testamento (*****) estavam manuscritos com letra diferente daquela do texto principal, ao seu fim, deixando a entender que era um complemento escrito por pessoa diferente do autor:

"O Rui diz que é meu amigo
eu escuto ele falar,
o judas deixou comigo
para ele eu entregar
uma bacia furada
pros pãezinhos amassar.

Pra mim restou uma corda
pra poder me enforcar,
pro Rui o judas deixou
somente um velho emborná
pra ele fazê remendo
nas calças quando rasgar.

O Rui aqui nesta vila
é um caboclo respeitado,
o judas deixou pra ele
um piniquinho furado
pra por embaixo da cama
quando ele estiver deitado.

Ainda resta pro Rui
um terno e um guarda-chuva,
o judas deixou também
a aliança e um par de luva
deixando ordem pra ele
casar-se com a viúva."

Isto fica claro à menção repetitiva nas estrofes à conhecida figura do saudoso "Rui da Padaria" (Ruy Vale), comerciante local muito popular que escrevia os testamentos, a quem se deve o reconhecimento dos esforços na manutenção desta tradição. Comentava-se, que na proximidade do festejo, deixava sobre o balcão papel e caneta e quando os fregueses mais afeitos à brincadeira chegavam, tinham a liberdade de escrever um verso de herança, configurando assim um caso muito interessante de construção coletiva deste pasquim. 

Impresso de divulgação, em papel ofício, 
anunciando queima do judas.
Santa Cruz de Minas, 2001.
Em 1999 em Santa Cruz houve uma queima na Praça do Cruzeiro, num lote vago, onde se fincou uma embaúba da qual se pendia o boneco, com um trailer aproveitando da oportunidade comercial do evento, incrementando as vendas. Caixas de som tocavam em alto volume música popular em voga, som mecânico. Não havia nenhum enfeite no local, nem mesmo a famosa chácara do judas, construída com folhas de bananeira e talos de cana, mas a criançada se divertia com o pau de sebo e o espiribol. No mesmo dia aconteceu um outro judas, na Cava, organizado pela sra. Helena. Havia poucos enfeites, música mecânica, um barraca improvisada com bambu vendendo comes e bebes. O boneco estava enforcado numa embaúba fincada em pequeno barranco. Não havia chácara. Soltaram fogos de artifício.

No ano seguinte, na Praça do Cruzeiro a animação se deu com um conjunto musical tocando música ao vivo; já noutro judas numa rua fechada na região da Caixa d'Água, o som foi mecânico. Mais uma vez não houve a chácara, embora o testamento estivesse presente. Em ambas a novidade ficou por conta da "mulher do judas", uma boneca enforcada em embaúba separada, vestida de saia, seios postiços bem evidentes, cabeleira loura. Chamavam-lhe "a juda", em oposição a "o juda". Os bonecos foram acesos pelo artefato pirotécnico do avião. O pau de sebo foi muito disputado pela criançada.

A tradição das queimas de judas continua na região embora bem mais arrefecida que no passado, quando tinha imensa popularidade e era sempre muito concorrida.

Judas numa embaúba. Rua Oswaldo Lustosa,
Santa Cruz de Minas, 2004. 
Notas e Créditos

* Em 1999 na região mais circunvizinha houve queimas de judas em Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, São Miguel do Cajuru, São Gonçalo do Amarante e São Sebastião da Vitória - todas estas vilas, distritos de São João del-Rei; na sede do município nos bairros São Dimas e Tijuco (Águas Gerais e dois no Barro Preto), além de notícias não confirmadas para o Largo do Carmo (Centro); Prados; Ritápolis e seu distrito, Penedo; Santa Cruz de Minas. Informantes: dois fogueteiros de São João del-Rei, fabricantes de judas, indicando os locais que lhes encomendaram os bonecos no ano da informação. 
** No Glória (Ritápolis), por exemplo, no testamento de 1997:


"Meu amigo Lisnei,
que trabalha no caminhão do leite,
preciso aconselhar,
fique esperto com Wilson pra não tomar seu lugar."

"Meu amigo David,
que é neto do Pazinha,
não põe a mão no bolso
nem pra jogar tampinha."

"Meu amigo Edmar,
que é um grande companheiro,
está com um nó na garganta
chamado Atlético Mineiro."

*** Por exemplo, num testamento de uma queima em São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei), em 20/04/2014, o termo de abertura era o seguinte: "Minha gente hoje é dia de queimar o judas que traiu Nosso Senhor. Como ele não tem filho, deixa a herança para os amigos. No mais termino. Os organizadores agradecem a todos que colaboraram."
**** Emancipação em 21/12/1995. 
***** Exemplar gentilmente cedido por Luthero Castorino da Silva em 29/03/1999. 
****** Texto e fotos: Ulisses Passarelli 
******* Leia mais sobre o assunto neste blog: 

JUDAS, JUDEU ERRANTE E TESTAMENTOS  
O BOI MALHADO E A QUEIMA DO JUDAS  
BOI & JUDAS 
QUEIMA DO JUDAS 
QUEIMA DO JUDAS: CAJURU

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