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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 26 de abril de 2016

IX Encontro da Cultura Popular do Caquende

Conclui-se no último domingo, dia 24 de abril o IX Encontro da Cultura Popular do Caquende, no extremo sudoeste da zona rural de São João del-Rei, às margens da represa de Camargos, no Rio Grande. Mais uma vez revelou ser um evento bem organizado e concorrido, graças à imensurável dedicação da equipe organizadora. 

A movimentação começou em verdade na quarta-feira, dia 20, com contação de estórias e abertura de exposição. 

No dia seguinte, foi a vez das lúdicas infantis, cordel de poesias em homenagem a Casimiro de Abreu, terço cantado e mais tarde, cantorias...

Sexta, 22, pela manhã, o autor deste blog teve oportunidade de estar reunido com a comunidade em palestra e diálogo sobre a inserção da cultura popular na sociedade moderna, os processos de construção e desconstrução da mesma e sobretudo de seus valores rurais. A fala aconteceu no salão onde acontecia como em anos anteriores, uma exposição de fotografias recentes e antigas de momentos importantes da vida social do lugar; peças antigas do mundo rural, como máquinas de costura, lamparina, ferramentas, mó (pedra de moinho), vasilhames, etc. Também exposto uma imensa série de troféus esportivos conquistados pela equipe de futebol do lugar. Além disto, significativo artesanato à venda, tudo produção local. 

Sábado teve mais palestra, teatro, encontro de corais e forró.

No dia maior, pelas oito da manhã, o povo reunido na praça sob uma grande tenda, enfeitada com elementos que evocam coisas da roça, como palhadas de milho, pilão, espantalho, jacá (balaio), carro de boi, etc., sediou o "Café com a Padroeira", antecedido de fala do Curador do Evento, Sr. Vicente Mário dos Santos, que culminou com uma prece coletiva da oração que o Senhor nos ensinou e por fim, graças a um fogão à lenha armado adrede, serviu-se a todos, gratuitamente, farto café, com quitandas típicas de forno, mandioca e inhame cozido, melado, leite acondicionado em "ciculatêra" (*), quentinho, café em bule esmaltado e chaleira de ferro; canecos da roça, tudo, absolutamente tudo, em seus mínimos detalhes reproduzindo a moda do campo, os hábitos da roça, os costumes da lavoura, como era antigamente. 

A medida que ia acabando uma rosquinha de nata, uma broa de fubá, logo aparecia uma pessoa com uma gamela cheia e reabastecia; outra renovava o conteúdo dos bules e chaleiras; outras mais cuidavam da higiene de copos e canecos, tudo com muito zelo e prontidão, ficando evidente o dedicado trabalho de equipe e a solidariedade, coisa cada vez mais rara. 

Enquanto isto, daqui e dali a criançada brincava livremente pelo largo gramado, em absoluta tranquilidade como convém a um pequeno distrito. O carreiro chegou trazendo uma junta magnífica de bois pretos, já atrelados à canga, para prender ao carro. Chegou uma folia. Depois um congado. E mais outro. O movimento cresceu. Sob a sombra das grandes árvores, numa mesinha, uma turma disputava no baralho uma partida de truco. Numa barraca o freguês saboreava uma porção de dobradinha ou de canjiquinha, e achava uma da boa, branquinha, cachaça. Encontros, reencontros, amigos, compadres, congadeiros, foliões. Por toda parte o povo conversava, sorria, estava descontraído e ao mesmo tempo indignado porque a capela não foi aberta à visitação como antes ocorria. Infelizmente nem sempre se pode contar com a sensibilidade da Igreja, que ao dar as costas para um evento desta natureza perde a oportunidade de estar junto aos fiéis, povo de Deus. Lastimável retrocesso.

Pelo fim da manhã, apareceram os trabalhadores rurais, homens de lavoura, para a colheita do milho. Vieram vestidos à caráter, de botinas, chapéus, facão à cintura e roupa da lida. Nos fundos da praça um cercado delimitava um milharal arranjado especialmente para o evento. Abriu-se a tronqueira. Um boneco na entrada fez as vezes do joão do mato. Rezou-se para São Bento livrar "dos bicho mal peçonhento". Entraram e se puseram a quebrar as espigas e a colheita foi ajuntada num jacá de trançado de taquara. O povo em volta via tudo, adorava, filmava, fotografava. Congadeiros e folieiros também rodearam. Daí, chegaram as senhoras da comunidade trazendo uma peneira trançada dessas de colheita, cheias de pedaços de bolo de fubá e oferecem aos trabalhadores da colheita; outra trouxe o bule de café quente e canecos esmaltados para servi-lo. Já chegava alguém com uma garrafa de pinga e tomava um gole, motivo de alegria. Por fim veio a Lia com um caldeirão e colher de pau. Era angu doce que trouxe, delícia de fubá cozido, cheio de pedaços de queijo. Para servir, arrancavam palhas de milho e fazendo-as de tigelas comiam à vontade. Teve cantoria também, de ronda de roça, canto de mutirão, tradicional. O carro de bois entrou na roça: "vai, Gigante!", gritou o carreiro com um boi, brandindo sem fincar a vara de ferrão. O jacá de milho colhido foi despejado em cima do carro. Um trabalhador tomou de uma palha, picou fumo de rolo, enrolou um cigarro e deu uma baforada. 

O carro saiu pra'li afora, gemendo e os trabalhadores em cima, e em desfile foram à tenda, onde o milho foi descarregado. Um deles veio com um pé de milho, grande, seco... é a "bandeira". Entregar a bandeira ao dono da roça é entregar um ramo em sinal de fim dos trabalhos, sucesso na colheita. Poderia ser também um pé de cana. 

É preciso comemorar a colheita. Deus deu a terra, a água e a semente. A colheita é fruto desta graça com o suor do trabalho. Agradecimento que se preze é com cantoria e dança _ é a vez do engenho novo. 

Em torno do pé de milho da bandeira, se entrelaçam pelos braços homens e mulheres, em roda, homens virados para fora do círculo de dançantes, mulheres para dentro. Quando a música irrompe, balanceiam no ritmo e como numa corrente, ao comando "vai!", soltam os braços e entrelaçam de novo, agora invertido, quem estava virado para fora fica voltado para dentro, e vice versa. 

"Meu engenho novo, morena!
Deixa muê!
Meu engenho novo, morena!
É da Tutuca!
Bota a cana nele, morena!
Faz o açúcar..."

Depois foi o almoço. Os grupos culturais o receberam de bom grado, abundante, bem temperado, saboroso. 

De tarde foi a vez do cortejo, de todos os grupos rodeando a praça e depois a hora das apresentações individuais na tenda, anunciando-se previamente ao microfone. Ei-los, na ordem da apresentação: "Congada Nossa Senhora do Rosário", de Carrancas, do Capitão José Geraldo Barbosa (congo); "Moçambique Nossa Senhora do Rosário", de Ibituruna, Capitão Adeildo Alves (jomba); Folia do Divino do Bairro Guarda-mor, São João del-Rei, do Mestre-folião João Batista do Nascimento ("João Matias"); Grupo Pilão de Inhá, do Caquende, sob a Coordenação de Maria de Sousa (Lia); "Congado São Benedito e São Sebastião", do Bairro Matosinhos, São João del-Rei (catupé); "Moçambique Santa Efigênia", de São João del-Rei, Bairro São Geraldo, Folia do Jardim São José, Bairro Tijuco, São João del-Rei, Mestra-foliã Lilia; "Coral de Seresta Viva Voz", do Conservatório Estadual de Música Padre José Maria Xavier, São João del-Rei, sob a coordenação do Professor Paulo Miranda (com repertório todo pautado em temas da cultura popular); Banda de Música Municipal de Nazareno. 

Tudo que acontece neste evento é prestigiado. Ninguém arreda o pé. O povo fica contagiado pela beleza da festa, enebriado de saudosismo, lembrando que era assim na época do papai ou quando se era criança. Daqui e dali se ouve muita palavra de elogio, que não pode deixar acabar, que merece mais apoio, etc. O encontro parece um reflexo de nosso passado perdido. A correria da vida moderna remete a uma introspecção ao ver este evento... para quê correr tanto? Por que tanta loucura atrás do dinheiro? A vida na roça não traz mais paz e qualidade? Parece que é uma festa feita para mexer com a emoção das pessoas. Sem dúvidas é um momento importantíssimo de valorização da cultura popular rural. Ali se revê dentro de uma estrutura festiva criteriosa e digna de encômios os elementos em ocaso desse universo interiorano mineiro. 

A toda equipe organizadora é devido o mais sincero parabéns e o reconhecimento do êxito alcançado. Esperamos que no ano vindouro, quando se comemorará a décima edição do evento, que o mesmo seja repleto de sucesso e revestido de grande animação. 

Cartaz do evento em papel couché, 29 x 41,5cm. 

Notas e Créditos

* Ciculatera ou chiculatera são corruptelas frequentes de "chocolateira", vasilha de alumínio de fundo largo e circular e boca estreita e afunilada, munida de alça, usada nos fogões à lenha. O mesmo que "sapona". 
** Leia também neste blog sobre o VII Encontro da Cultura Popular do Caquende, no qual se pode apreciar algumas fotografias da ocasião (maio/2014): CAQUENDE HOMENAGEIA O LAVRADOR
*** Texto: Ulisses Passarelli
**** Agradecimentos especiais: a Daniel Willian Dias Nascimento, por cuja gentileza e apoio ofereço esta postagem. 

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