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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 14 de agosto de 2016

Boi da cara preta, sapo-cururu, dorme neném... e outros acalantos

Acalanto ou cantiga de ninar é o nome que se dá a pequenas e simplórias canções, que por força da tradição, os adultos cantam baixo para acalmar os bebês, de forma propositalmente suave, doce e por vezes repetitiva, para induzir o sono.

Pais e mães, madrinhas e padrinhos, avós e tias zelosas, conservam o costume em cada família, a bem da verdade, no país inteiro. A modernidade dos costumes e o progresso tecnológico ainda não baniu de todo este hábito carinhoso. E não é exclusividade brasileira. Equivale do ponto de vista musical ao berceuse francês e o lullaby inglês, segundo Oneyda Alvarenga (*). Diz a autora que a palavra acalanto é erudita; a designação popular é cantiga de ninar, e ainda, que, “foi utilizada por extensão e pela primeira vez pelo compositor brasileiro Luciano Gallet”.

Renato Almeida (**) atribui a origem portuguesa de nossas cantilenas para criancinhas dormirem, dizendo-as ser “canção ingênua, sobre uma melodia muito simples (...) é uma das formas mais rudimentares do canto, não raro com uma letra onomatopaica, de forma a favorecer a necessária monotonia, que leva a criança a adormecer.”

Cascudo, porém, dá pistas que além de Portugal nossos próprios indígenas também conheciam tais cantigas, ditas de macuru (berço). Tanto mais, existem em outras nações europeias: “kalebja polonesa, wiegenlied alemão, canción de cuña espanhola.” E fornece vasta bibliografia a respeito de sua existência no novo e velho mundos. Sobre a terminação de certos versos com som de vogais entoadas estendidas, propôs:

“Em quase todos os acalantos, o final adormecedor é uma sílaba que se canta com várias notas, á-á-á-á, ú-ú-ú-ú, o ru galaico, ainda popular nas cantigas de berço portuguesas. Creio que esse processo, de entonação primária, é uma reminiscência melismática, um índice oriental de sua origem, através da Península Ibérica.”

Obviamente que Minas Gerais como celeiro de tradições não desconheceria os acalantos, tal e qual a região das Vertentes. Resistindo aos anos ainda ouvimos em São João del-Rei:

“Dorme, neném,
Tutu já vem pegar,
Detrás do murundu,
Com pedaço de angu...”

Ou outro conhecidíssimo:

“Nãna, neném,
Que a cuca vem pegar!
Papai, foi pra roça,
Mamãe, foi passear.”

Ambos aludem a mitos daquilo que CASCUDO (1983) muito bem colocou como parte do “Ciclo da Angústia Infantil”. Tutu e cuca são seres místicos e míticos, monstros do imaginário popular invocados à guisa de assombro para pegar a criança que teima em não dormir, permanecendo nos brinquedos ou na pirraça, sobrepondo-se ao cansaço dos pais:

“Não o descrevem nem há a menor alusão a um detalhe físico. Sabe-se apenas que, à sua simples menção, as crianças fecham os olhos e procuram adormecer sob o império do medo. O Tutu vive nos lábios das amas de todo o Brasil. (...)  Tutu é uma corruptela da palavra quitutu, do idioma quimbundo ou angolês, significando papão, ogre. Correlatamente decorrem os sinônimos de temível, poderoso, assustador” (p.167)

O povo concebe mais de um tutu, porque os denomina especificamente... "tutu do mato", "zambeta" (ou cambeta, que significa coxo), "marambá": 

"Sai tutu-zambeta,
de cima do telhado,
deixa meu neném
dormir seu sono sossegado". 

"Vai-te embora, óh tutu,
óh, tutu-marambá,
senão o pai do menino
manda de matá!"

Já a cuca parece ser alteração do nome “coca”, monstro ancestral do imaginário ibérico, por vezes figurado como um dragão aterrorizante.

Outros acalantos célebres também correntes aqui seguem transcritos  tal como os são-joanenses o entoam:

“Sapo-cururu,
Na beira do rio,
Quando o sapo canta, ó maninha,
Diz que está com frio...

A mulher do sapo,
Também está lá dentro,
Fazendo redinha, ó maninha,
Para o casamento.

A mulher do sapo,
Foi quem me criou,
O marido dela, ó maninha,
Foi meu professor.”

Redinha, diminutivo de rede, parece antes artefato de tecido para se deitar, pendente entre dois suportes que propriamente a rede de pesca; ou ainda pode ser alteração de rendinha, renda, roupinha, peça do enxoval. É como se depreende pela alusão ao casamento.

Quem não ouviu...

“Boi, boi, boi,
Boi da cara preta,
Pega esse menino,
Que tem medo de careta!”

No norte mineiro, pelas bandas de Pirapora, ouvi em 1987 uma curiosa variante regional:

“Boi, boi, boi,
Boi da cara branca,
Pega esse menino,
Que tem medo de carranca!”

Certamente é uma referência às figuras de proa, as famosas carrancas entalhadas em madeira, figuras monstruosas de dentes pontiagudos e ameaçadores, instaladas na ponta das barcas do Rio São Francisco.

Meu avô materno cantou-me uma assaz interessante que dizia muito antiga, dos tempos do cativeiro, e que não encontrei em outras fontes:

“Dróme, dróme, Nhônhozinho!
Nhônhozin’ num qué drumi;
Nêgo véio tá cansado,
Nhônhozin’ num qué drumi...”

Registrado tal e qual sua pronúncia. O sentido refere a um escravo a quem foi dada a função de ninar o menino branco, filho do senhor: senhorzinho, sinhozinho, nhônhozinho.

Em Santa Cruz de Minas além das clássicas cantigas de ninar aqui já citadas correm estas:

“Nina, neném,
Do meu coração!
Lú-lú-lulú!
Lú-lú-lulú!”

“Quando eu era pequenina,
Nem sabia falar,
Minha mãe já me ensinava
Ao Deus do céu adorar.
Entre beijos e carícias
Ensinava o nome seu,
Ela dizia: é Papai do Céu!”

Bastante significativo é este acalanto informado pela mesma fonte de Santa Cruz:

“Passa, passa, manjerona,
Eu também queria ir.
Manjerona é mãe do sono,
Quem tem sono quer dormir.

Passa, passa, manjerona,
Eu também queria ir.
Tenho sono e não durmo,
Fico só pensando em ti.”

A manjerona é uma erva fina, rasteira, de folha miúda, muito cheirosa, da qual se faz um chá saboroso se adocicado, que a medicina popular atribui a propriedade de calmante e capaz de aliviar cólicas geradas por acúmulo de gases. As mães e avós costumam dar na mamadeira um pouco de manjerona aos pequeninos para favorecer o sono quando o choro se impõe e o ventre se mostra inchado (***). Daí a expressão “mãe do sono”.

Por outro lado, os indígenas tinham muito arraigado a noção de mãe, ci, uma mãe para cada coisa ou elemento da natureza. Esta concepção, na formação étnico-cultural passou ao povo brasileiro como parte de seu folclore. Aqui mesmo nas Vertentes, ouvimos falar em mãe da lua (personificada na figura do pássaro urutau), mãe da pedreira, mãe da cachoeira, mãe do corpo (endométrio, camada interna do útero). Será a manjerona uma personificação, ou melhor, materialização do conceito de “mãe do sono”, um ente simbolizado numa planta votiva?

Divagações à parte, encerra-se esta postagem ainda com as memórias avoengas de São João del-Rei, remetendo a uma antiga modinha melancólica, cuja autoria desconheço, e que no seu bojo se expressa claramente a uma cantiga de ninar:

“A vida é mesmo assim,
Eu bem sei, posso afirmar,
Ainda que resista dores
De não suportar.
A vida é mesmo assim,
Eu julgo por mim e pelo desdém.
Eu ainda bem me lembro
Quando eu era criancinha,
Deitado numa redinha,
Na sombrinha do sertão
E a minha mãezinha
Soluçava então
E a pobre da velhinha
Entoava esta canção:
Dorme, dorme, filhinho,
Meu anjinho inocente;
Dorme queridinho,
Que mamãe está contente.
Agora desprezada
Sem ninguém me querer bem
Eu vivo abandonada
Por este mundo além.
A vida é mesmo assim
Eu julgo por mim e pelo desdém."


Referências Bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro [s.d.]. 930p. Verbete: Acalanto.

CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1983. 345p. p.167 e ss.

Notas e Créditos

In: “Comentários a alguns cantos e danças do Brasil”, Revista do Arquivo Municipal, n.80, p.209. Apud CASCUDO [s.d.].
** In: “História da Música Brasileira”, p.106. Apud CASCUDO [s.d.]
*** Como procedimento este blog não recomenda qualquer uso ou prática da chamada “medicina popular”, tais como ervas, raízes, cascas, sementes e outros. Apenas os registra pelo valor etnográfico.
Sobre os cuidados com a infância ver: FOLCLORE DO PARTO
**** Informantes principais: São João del-Rei – Aluísio dos Santos; Santa Cruz de Minas – Elvira Andrade de Salles. Aproximadamente 1995-6.
***** Texto: Ulisses Passarelli

Um comentário:

  1. Estou há muito tempo procurando esta ultima cantiga de ninar. Meu avô cantava para meu pai, que cantava para mim. Não vou deixar essa tradição morrer. Obrigada por postar ela aqui

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