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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 7 de maio de 2014

A Velha do Chinelo

O povo é assim. Usa estórias para ensinar, dar exemplos, transmitir experiências, sabedoria. No meio de uma conversa informal, um bate-papo, aflora uma joia da cultura popular. O folclore não é apenas um velho costume que se mantém por mera repetição. Ele tem uma lógica, uma inteligência didática. Assim o boiadeiro Zé Cristino saiu-se com esta narrativa. Tão grande quanto a hospitalidade mineira é a desconfiança. Minha sogra dizia: "coração dos outros é terra que ninguém pisa, meu filho".

Segue um exemplo materializado em forma de conto. Não é qualquer um que nós colocamos para dentro da nossa casa. Nem tudo que ouvimos merece crédito. A cilada reside por traz de aparências inocentes. O mal tenta ... atenta, corrompe, usa de artifícios para chegar. O conto popular transmite essa lição. 

*  *  *

Diz que o diabo atenta o casal por sete anos seguidos para estragar o amor, separar e ganhar a alma. Depois não pode provar mais.

Havia um casal unido pelo amor e pela fé. Tementes a Deus, eram honestos e se respeitavam. Tudo que faziam levava o nome do Senhor: "se Deus quiser!", "graças a Deus!", "Deus quer assim", "Deus seja louvado". Rezavam e praticavam o catolicismo.

Moravam numa fazenda. O capeta a quase sete anos já tentava separar os dois sem êxito. Faltando um dia para esgotar o prazo que dispunha, tomou a forma humana, montou num cavalo e saiu pelos caminhos, desiludido e pensando o que fazer. Passou por um casebre paupérrimo onde morava uma velha, vizinha do casal bem aventurado. Estava na janela. Satanás parou.

_ Boa tarde! Mas... não conheço o senhor. É de fora?
_ Não senhora. Faz sete anos que moro aqui. Me arranja um copo d'água?

A velha trouxe a água e continuou com sua curiosidade:

_ Sete anos?! Não é capaz. Como que nunca te vi...
_ É que eu estava muito ocupado em ganhar a alma daqueles dois lá.
_ Uai! Quer dizer que o senhor é o tinhoso?
_ Não sei o quê que eu sou não. Isso não interessa. O que importa é ganhar aquelas almas hoje, porque, amanhã, esgota o prazo.
_ Ah, isto é fácil!
_ Fácil? se eu não consegui...
_ Já disse que é fácil. 
_ Se a senhora conseguir eu te prometo que dou tudo o que a senhora quiser. Tudo. É só pedir. Quer ficar rica? Quer uma casa boa? 
_ Não. Eu sou pobre, vou morrer pobre, mas estou satisfeita. O que está me fazendo falta é um par de chinelos.
_ Oquê?! Só isto!!! É pobre até para pedir... Quer tratar assim então? 
_ Quero. Amanhã o senhor volta aqui. 

O demônio figurado em homem foi embora. 

A velha não perdeu tempo. Foi até  a fazenda onde morava o casal e só a mulher estava em casa. O marido saiu cedo para trabalhar. De longe ela o avistava no alto de um morro, roçando pasto. 

_ Bom dia! , disse a velha à mulher. 
_ Ô dona fulana, chega pra cá! Pode entrar. Senhora é de casa, gente conhecida. 
_ Dá licença. E seu marido?
_ Está pelejando na roçada de pasto. Olha lá...
_ Ah, minha filha, esse mundo! Oh, não é candonga (*) não, mas não acho justo você aqui sozinha em casa o dia inteiro nessa luta: varre, passa, lava, cozinha, limpa tudo e seu marido encontrando com outra...
_ Está doida! Ele nunca faria isto!
_ Eu sabia que não ia acreditar, mas é só tirar a prova. De tarde você vai ver. Eles encontram lá debaixo daquela árvore no pasto. É só esperar. Mas eu vou te ensinar uma simpatia para ele esquecer ela de uma vez por todas: pega uma navalha na hora que ele estiver dormindo e passa por cima do pescoço dele em cruz três vezes, sem encostar. É bater e valer (**). Mas fica calma, filha. Cuidado, não briga. 

Foi-se a mentirosa e a mulher ficou atormentada. 

A velha foi em casa. Trocou de roupa, colocou um vestido todo colorido. Mudou o jeito do cabelo e até a ginga do andar. Deu volta para não ser vista, subiu o morro pelo outro lado e entrou no pasto que o homem estava roçando. Ele logo estranhou: 

_ Uai, a senhora aqui? Tem alguma novidade ou recado?
_ É meu filho, essa vida não é fácil. Sua mulher...
_ O quê que tem ela?
_ Tenho que te contar o que vi. Chega aqui pra sombra. 

Foram para debaixo da tal árvore. De longe a esposa viu a silhueta dos dois mas não reconheceu a velha por causa da distância. Acreditou que era verdade a traição do marido. 

A velha lhe falou: 

_ Senhor sabe, né, eu sou de casa. Chamei... chamei na sua fazenda, ninguém atendeu. Rodeei pelos fundos e entrei pela cozinha. Escutei aqueles risos lá dentro. Voz estranha. Cheguei e vi sua mulher com outro homem no quarto. 
_ Não acredito! É mentira!
_ Verdade! Pode acreditar. E digo mais: escutei eles tramar... Ela vai te matar com uma navalha para ficar com a fazenda e ter sossego de viver junto com o amante. O senhor chegando lá não fala nada com ela, não demonstra. Faz que não teve nada. Mas fica prevenido. De noite o senhor vai ver a armadilha dela. 

Foi-se embora a ardilosa. Bastante nervoso, o homem pensou muito e resolveu seguir o conselho da velha. Chegou em casa e não falou nada para a mulher. Ela também nada comentou com ele. Estavam estranhos um com o outro. Logo ele se fez de muito cansado e foi dormir. Ao deitar deixou o revólver armado sob o travesseiro. Fingiu que dormia. Chegou a esposa e chamou. Ele não respondeu, como num sono pesado. Esbarrou nele. Teve então certeza que já dormia mesmo. Pegou a navalha no banheiro e foi fazer a simpatia. O homem pressentiu ela junto dele, abriu os olhos, a viu com a navalha. Lembrou da fala da vizinha e atirou na cabeça da esposa. Ao vê-la morta, sangue para todo lado, entrou em desespero e descontrolado, suicidou-se com um tiro no ouvido. 

O maligno, que a tudo assistira escondido em sua invisibilidade, no outro dia se fez de novo em cavaleiro e foi à tapera da velha maliciosa. Pegou uma vara comprida, colocou o par de chinelos novos na ponta e entregou a ela de longe, esticando a vara até a janela, sem apear do animal. Falou: 

_ Ôh, velha, toma aqui o seu chinelo! A senhora é tão perigosa que nem eu quero chegar perto... Morre logo, viu, não demora não, que lá no inferno a senhora vai fazer proeza ... 

E foi-se embora para as profundezas, satisfeito com a vitória. 

* Candonga: africanismo, com o sentido de fofoca, intriga, mexerico, calúnia, fuxico, inverdade. 
** Bater e valer: o mesmo que "tiro e queda". Expressão popular que indica infalibilidade. 
*** Texto: Ulisses Passarelli
**** Informante: José Cândido de Salles, 08/09/2000, Santa Cruz de Minas/MG.



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